domingo, 6 de novembro de 2011

estudos hegelianos

  

        AVISO A POLÍCIA ESTA CONTA E MEU COMPUTADOR ESTÃO SENDO UTILIZADOS POR BANDIDOS À MINHA REVELIA MEXEM NOS CONTROLES, ALTERAM ARQUIVOS

==============================








             G. W. F. Hegel                                                           
                                                                                                                      Eliane Colchete

       
            A obra de Hegel é vasta. Mas algo que chama a atenção no seu desenvolvimento repõe a natureza ambígua de sua relação com o tempo. Pois, por um lado, penso que a partição que se poderia estabelecer dos seus núcleos fundamentais já anuncia a articulação das regiões que a contemporaneidade problematiza: fenomenologia, epistemologia, sociedade, espiritualidade, subjetividade e linguagem. Mas o que limita esses núcleos do hegelianismo ao presente é o nexo quadricular que se estabelece entre eles, sua interdependência fundamental, quando na contemporaneidade o que os carateriza é a autonomia, a imanência favorecida pela extrema complexidade temática em cada região.
             Os escritos integram o título da minha pesquisa "O devir das ciências humanas", escrito entre 2006/2008, e com exceção de alguns cortes sobre trechos que não correspondem à minha concepção atual, mais favorável à Hegel em particular e ao Romantismo em geral do que naquela época, estão praticamente conformes a redação original.

 

              1)    Fenomenologia

         Esse núcleo se relaciona ao estudo da consciência, ao fenômeno de estar em uma efetividade dotada de sentido que se constitui ao mesmo tempo como a realidade daquele para quem a efetividade se comporta como o mundo.
         Esse poderia ser o arqui-fenômeno, pois todo fenômeno se produz numa relação com ele, enquanto acontecimento de sentido, não apenas coisidade.
         Seja como for que se aborde esse núcleo, ao modo do pesquisador interessado no funcionamento do cérebro ou ao modo do filósofo transcendental, não há como contornar o fato duplo pelo que não se fornece algo como a estrutura da objetividade sem que se tenha previamente constituído sob algum aspecto a estrutura da subjetividade.
           Os pontos de vista filosófico e científico não destoam, porém, quanto ao objetivo que é apreender a pressuposição recíproca dessas duas estruturas, sempre a ambição consistindo na revelação pela qual ambas se tornam aspectos da mesma realidade. Isso cria ainda um outro foco que é aquele do “sujeito” como personalidade ou agente social. Esse foco, não importando como se conduz a ele ou como o caminho até ele obriga a encará-lo de certa forma, torna-se apenas esboçado na fenomenologia, não pertencendo ao seu núcleo conceitual, que se limita à interação das estruturas subjacentes a uma experiência consciente.
         Por outros termos o que se afirma é que esse objetivo se delimita como uma tarefa que deve ser realizada de modo que o próprio desdobramento, o fato de que, para o sujeito nunca deixa de parecer que há o Eu e o Mundo, se torne compreensível pela maneira de ser do real que reúne a ambos.
         Hegel designa a duplicidade que o sujeito vivencia como Outro do mundo em termos de Extrusão (Entäusserung), a substancialização do Selbst. O Selbst, que se traduz por “Si” e é habitualmente grafado pelo termo inglês Self,  consiste no ser em si e para si da subjetividade.
           A extrusão é a subjetividade como algo no mundo, a pessoa objetivada como unidade corpo-autoconsciência. A essa unidade vivencial, espírito que pertence ao mundo, que é no mundo ao mesmo tempo que sabe-se frente a ele, Hegel contrapõe a consciência pura, o Selbst. Nesse ponto intervém a Alienação (Entfremdung). Pois o espírito é liberdade para si mesmo, efetividade objetiva, e no entanto, uma unidade perante a alteridade da multiplicidade dos fenômenos mundanos. Ora, o Selbst, sendo a consciência pura, é autor do mundo, Subjetividade Absoluta, logo, realidade una, onde não ocorre a concepção de alteridade.
           Entre a consciência pura e a consciência de si se instala a alienação como necessidade de exteriorização  da essência, alteridade não somente como o fenômeno das coisas, objetos formalizados pela consciência, mas como o mundo das leis, o elemento do direito onde os agentes não podem deixar de se inter-relacionar pela extrusão, como seres individuados.
          O volume inicial da Fenomenologia do Espírito cobre o longo processo pelo que o sujeito se descobre como “subjectum” do mundo, este sendo perante a subjetividade que lhe fornece o sentido, mas a espessura do hegelianismo frente ao kantismo está em que ao invés de duas críticas como dois eixos separados de interesses da razão, pelo que o regime de sua legislação deveria encenar acordos irredutíveis entre as faculdades e uma troca de papéis entre elas, Hegel mostra que a consciência não conduz ao saber verdadeiro, ao conceito, sem que ao mesmo tempo se descubra como agente do Valor no mundo, sem que o mundo se transforme no mesmo lance em algo que é cultural e moralmente ordenado.
          Em Kant a unidade dos interesses da razão é tão somente algo que pertence à experiência, ou ao modo de ser discursivo da razão, que não põe a sua verdade de modo imediato, mas somente por meio do conceito, do trabalho do entendimento ou da legislação racional que integram a experiência una do sujeito pela regulagem dos atos de juízo.
           O sujeito está sempre ajuizando a adequação, seja dos dados às sínteses do entendimento, seja dos atos às determinações da vontade, seja quanto aos elementos do gosto, mas a razão mesma é profundamente compartimentada sem que o sujeito precise perceber isso, ou sequer possa fazê-lo , na inteireza da sua experiência de mundo, na exterioridade da elaboração Crítica.
           Hegel não postula uma razão imediata, nisso não rompendo com os quadros do kantismo, mas torna a unidade vivida na sua concretude, pois para ele não há distância entre o ato da razão e o valor, o sentido atuado como realidade no mundo, se não como efetivado nessa mesma realidade.
        Assim, o Selbst que é a consciência pura transforma-se no sentido valorativo pelo que tudo o mais é, enquanto a separação entre a presença efetivada como sendo a do sujeito e os valores objetivados nos sistemas da ética, do direito e da cultura torna-se uma pressuposição entre esse dois pólos existenciais. Por exemplo, os antepassados continuam presentes no vínculo dos parentes que é o Selbst da família, a legitimidade do governo, sua potência ou vontade, é o Selbst do povo.
          Mas essa pressuposição não se põe como um vínculo nominal, e sim como temporalização. É em cada momento, em cada presente transitório, que a operação do sentido se realiza por meio da alteridade. Nenhum desses dois pólos recebe de uma vez a sua efetividade, nem a tem em si mesmo, mas a recebe e a conserva pontualmente do outro, isto é, em cada momento, em cada presente transitório. A alienação se torna a chave do processo como temporalização do sentido, pois nada possui “um espírito nele mesmo fundado” ou permanente, a unidade não sendo o equilíbrio, mas a essência sendo sem cessar atribuída pelo Outro: “tudo está fora de si”, no “estranho”.
         O Selbst sem presença é fé, enquanto que a realidade da presença é a alienação da consciência efetiva e do seu objeto que é o mundo ético. No entanto, a temporalização engendra o retorno da alienação à realidade subjacente ou fundamental do Selbst.
        O mundo ético se volta à fé como a realidade negativa do seu desenvolvimento no tempo, que Hegel descreve em termos de separações - entre a lei de Deus e a lei do humano, entre o saber e a ignorância – logo, se volta ao Selbst quando essas separações são superadas. Quanto à presença que se tornou singular pela extrusão, seu retorno da extrusão se faz pelo processo de captar o conceito, o universal. A consciência capaz de atingir o conceito se torna o Selbst universal, mas sem que isso esgote o processo, que se estende até que a consciência possa reunir todos os momentos como tantos mundos espirituais – tanto as realizações do valor, quanto as suas realizações conscientes de si no conceito. O processo culmina na inteligência pura que conduz à auto-apreensão do Selbst. Ora, como o mundo ético é em relação essencial com a presença singular, vemos que os dois retornos coincidem como faces do mesmo processo.
          O momento de culminância não quer se precisar como pura posição da identidade para si mesma, e sim como a compreensão do Selbst enquanto atividade realizadora da cultura, isto é, como o desbloqueio da atuação conceituadora do mundo. Tudo agora se torna conceituado, o que significa que nada mais é apreendido ao modo de uma coisa indiferente, como se o objeto fosse independente ou neutro, mas tudo se torna valor para o Selbst. Este tampouco se põe agora como a fé, assim como o mundo deixou de ser o mundo “real”. O retorno da alienação resolveu a oposição das presenças efetivas, a do sujeito e a do objeto, pelo que só restou o Selbst e seu atuar, revolução que Hegel enuncia em termos de realização da liberdade absoluta.
           Essa expressão só quer mostrar que a temporalização produziu o caminho do objetivo ou funcional ao cultural, mas também do cultural ao mundo da consciência moral. A temporalização não exclui os momentos como termos singulares, mas mantém a progressão pressuposta pela natureza daquilo que só engendra o caminho no tempo pela cisão do que sempre é e volta a ser. O elo do hegelianismo ao kantismo me parece bastante forte, ainda que o que Hegel produz é a superação da perspectiva a-histórica ou “abstrata” do transcendental kantiano.
          Ora, o que volta a ser não deixa de ter se transformado historicamente ao ser concretizado na realidade do processo histórico. O momento se torna algo não apenas relacionado de um certo referencial acidental ao que nele se efetiva, mas é o ser mesmo do que transcorre. Assim, o que torna a leitura da Fenomenologia do Espírito algo surpreendente e complexo é que aqui não se separa o que habitualmente é designado como os estágios desde a percepção ao conceito e a narrativa que põe em cena as idades da história.
        Chatelet conceitua essa articulação identificando três registros: o da consciência em si, o da consciência para si e o da consciência em si e para si. O nível da consciência em si é aquele em que Hegel trata os estágios da atividade espiritual, desde a percepção até a moralidade. No nível da consciência para si o que se concede à observação é o desejo, as modalidades transitórias da existência, desde o sujeito do despotismo oriental ao cidadão dos estados modernos. Quanto ao terceiro nível, o exame abrange a consciência em si e para si como conhecimento, isto é, cobre as realizações históricas que perfazem o devir da cultura universal.
          A idéia norteadora dessa articulação textual é que a formação do espírito não se delimita como algo independente do que o espírito realiza em cada estágio de sua formação. Mas também o inverso, isto é, que a história da cultura não apresenta fatos autônomos, assim como nada ocorre como tendo uma identidade concreta na exterioridade do seu momento.
           A inversão do conceito de tempo que caracteriza o senso comum ou a perspectiva iluminista é patente. O senso comum lida com coisas, estaria no estágio da mera consciência que apreende o aqui e agora, no máximo chegando ao estágio de percepção, atividade que agrupa o fluxo sensível em objetos estáveis, com suas propriedades associadas. Ora, o pensador do tipo iluminista chega ao entendimento, como ao momento seguinte dessa atividade, constituindo o sistema de coisas, uma ordem reguladora da percepção. Em todo caso essas coisas são dadas como preexistindo de direito em si mesmas. A ordem temporal em que podem se apresentar se torna exterior, acidental, mudando conforme o referencial.
        Hegel designa esses estágios, do senso comum ou do pensador iluminista, como termos da ilusão do não-iniciado, pois o que eles fornecem é a certeza sensível que parece o conteúdo mais rico do conhecimento, ilusão da infinita riqueza do dado, pois se o pensa como a efetividade do real na perfeita exterioridade do sujeito.
        Chatelet enfatiza a relação desses estágios com as duas meditações iniciais de Descartes, e Hegel sublinha que os iluminismos, seja na vertente puramente materialista, seja na vertente empirista que localiza a essência na atividade do espírito sobre os dados da sensação, nunca atingiram o “conceito da metafísica cartesiana”, isto é, a terceira meditação, conforme Chatelet, em que Descartes nomeia o momento da percepção da implicação do sujeito pensante no objeto pensado. O pensado é sujeito, atividade subjetiva do pensar, não simples passividade conexa à realidade independente dos dados.
       No entanto, o paralelo com Descartes se interrompe. Hegel não nomeia esse momento em que o sujeito se alçou do puro em si de sua consciência alienada no outro em si que seria o das coisas na sua exterioridade essencial, como uma simples posse do sujeito por si mesmo como sujeito de conhecimento que deve poder por ora se assegurar da realidade do mundo pelo seu próprio status cognoscente.
       O para si só se torna um “segundo movimento”, na expressão de Bréhier, porque o sujeito não se descobre sem descobrir ao mesmo tempo os outros sujeitos. Ao invés de ter encontrado o meio de assegurar a estabilidade do mundo, o que o sujeito encontra é o mundo misterioso, impenetrável, hostil, de consciências estrangeiras umas às outras.
        Ou, conforme Chatelet, ser para si é descobrir a força que anima o seu ser, descobrir o desejo que agora não pode se conceituar como uma relação com o objeto, e sim com os outros sujeitos: o desejo não é o que porta sobre objetos, é sempre desejar o desejo do outro, querer que ele atribua a nós o nosso status de Sujeito que é, porém, o dele.
        O conflito nascente só pode se resolver progressivamente, sua solução consistindo na união das consciências na universalidade do espírito. A progressão inclui as figuras ou idades históricas do homem: guerreiro, estóico, cético, místico, romântico, humanitário, cavaleiro errante, intelectual, cidadão e religioso.
A luta pelo reconhecimento que caracteriza a dialética do senhor e do escravo, fase do guerreiro que conduz, pela importância crescente do trabalho que emancipa finalmente o escravo vencido pelo senhor, ao momento estóico, se tornou o emblema da filosofia de Hegel na França, conforme Chatelet, e influenciou particularmente o pensamento de Marx.
         Aqui o interessante não seria tanto se deter nos pormenores dessas fases, mas observar os cortes fundamentais. Assim, entre o guerreiro e o estóico se instala a transição do estado de guerra ao estado da civilidade instaurado pela organização do trabalho. Mas entre os momentos cético e místico ocorre outro tipo de salto, não apenas imanente à história na progressão interior a um mesmo movimento de consciência, e sim ao novo movimento, aquele da Razão, quando a consciência se faz em si e para si.
         Se os momentos anteriores podem ser designados em termos relativos ao do objeto e ao do sujeito, o momento da Razão relança a objetividade, mas não a das coisas e sim a dos valores. Os objetos são agora os da cultura, enfeixando, desde o momento místico, as idades éticas como esses estágios prescritos que envolvem a totalidade das religiões e das possibilidades postuladas pelos seres humanos em sua tentativa de reconciliar as consciências e resolver o problema do desejo.
        Ora, Hegel não pensa que qualquer solução seja menos provisória não sendo a revelação do Cristo. A história do Verbo encarnado seria uma réplica alegorizando a narrativa do espírito: por um lado, auto-conhecimento de Deus, mundo como revelação do Espírito, mas também justificação da existência. A relação entre remissão dos pecados e encarnação do Verbo encena a superação da história sangrenta do conflito dos sujeitos pelo desenvolvimento do espírito, pois a revelação é ao mesmo tempo a posse do saber absoluto, pelo que o mundo se transmuta na responsabilidade espiritual dos sujeitos.
       Contudo, como vimos, essa transmutação envolve a transfiguração conceitual do mundo como atividade de constituição de sentido e valor que pertence ao sujeito. Hegel enuncia isso do seguinte modo: a religião cristã é o em si da realização do espírito, enquanto a autocompreensão como atividade espiritual constitutiva do mundo é o seu para si. A união desses dois momentos, o espírito em si e para si, será o Saber absoluto, o saber-se conceituante e conceituador que apreende o sentido da própria religião. Antes desse momento, a religião é apenas fé que realiza a união na prática, mas que ainda não possui o sentido do seu próprio ato.      
       Mas apenas a autocompreensão seria vazia, na verdade impossível, sem a fé que une os sujeitos na efetividade histórica que a religião realizou. Mais profundamente, o que o Saber absoluto apreende é o aí do seu ser, o fato do seu agir temporalizante que transfigura o mundo em valor.
        Novamente acentua-se o nexo da dependência do fato ao seu momento, pois nenhuma dessas realizações históricas, que se sucedem como figuras da formação do espírito, teria seu sentido na exterioridade da progressão que integram como estágios desse percurso.
         Mas se a culminância do itinerário fenomenológico é o Saber absoluto, poder-se-ia indagar, como Chatelet, do lugar dessa “filosofia completa” na Fenomenologia do Espírito: onde está a Ciência prometida? Qual é o conteúdo desse Saber? A obra que deveria se recolher, no momento de sua completude, na unidade do seu significado apenas anuncia a fragmentação pelo que a consciência não se fez espírito sem que o espírito, a cultura, tenha deixado de ser um conteúdo de saber, tenha se feito à imagem e semelhança do Real onde responde pelas mil vozes da sociedade, do sujeito e da história.
        Esse ausente/presente da Fenomenologia do Espírito, o Saber absoluto, é o caminho ontológico que o pensamento percorreu, desde que se pôs como pensar pela filosofia. Mas o caminho da filosofia só fez recolher o Outro do seu devir, que vinha sendo a história enquanto o desenvolvimento da cultura – a arte, a religião, o Estado. Ora, duas questões de suma importância ressaltam aqui.
      Inicialmente, a presença dessa barra que articula o que deveria ser mas só se põe pelo que deixou de ser, e aquilo que se enuncia na solenidade do fechamento da obra como aquilo que efetivamente é: ausência / presença, restituem a barra significante/significado? Sim, mas de modo especular, pois parece ser o significado o ausente, enquanto a consistência do que a obra enuncia como fechamento, culminância, presença ou plenitude se mostra apenas no resplandescer do significante puro, o Saber absoluto que só tem sua consistência alhures, na cultura mesma, no devir, na história.
       Lança-se assim a Fenomenologia do Espírito numa relação essencial com a consciência comum, como bem observou Jean Hyppolite, mas isso de modo que o nexo do Saber consumado com a consciência simples se realiza pelo liame da linguagem.
       Também a linguagem se duplica naquilo em que ela se realiza como pensamento em qualquer campo – o comum ou o da “ciência” que é nesse caso um outro nome para “filosofia transcendental” mas não kantiana, e sim no sentido do saber da subjetividade absoluta- e naquilo em que o que ela realiza, se pôde instituir o liame, guarda a relação com a significância, a barra que permite a um tempo Saber e Ser. Logo, são três os termos: a consciência comum, o Saber fenomenológico ou filosófico e o saber do mundo que repõe todos os aspectos do devir ou do espírito ou da cultura.
        O que se articula por esse meio é o desdobramento da Fenomenologia do Espírito e de A Ciência da Lógica, onde se trata do recolhimento, isto é, da linguagem, daquilo que a Fenomenologia, na culminância do simples-só Significante, deixou fragmentado. Não nos deve lograr a unidade falsamente profunda do Significante do Saber. O texto da Fenomenologia conduz a um despedaçamento, precisamente o da linguagem, isto é, à barra que articula, não ao conteúdo do saber, aliás impossível de se designar já que perfaz a totalidade – apenas pensável – do ente ou do real, mas ao funcionamento da linguagem na sua dobra com o Ser.
         Esse escândalo deve, ademais, ser silenciado. Ali onde se tratava de estender a tranqüilizadora imagem de um Saber que é o mesmo, ainda que não o igual, da consciência comum, apenas desenvolvido na devolução do seu ser ao seu mesmo, o que se descobriu foi uma brecha na finitude por onde escoa o devir da cultura, a pluralidade das línguas irredutíveis, não os idiomas dos povos, mas as que falam através dos códigos da cultura e da história, a significância como desnível, diferença que subjaz.
         Portanto, a recuperação do Saber, se não pode caminhar pelas bandas do Significado nem permanecer na secura do Significante puro, tem que se apresentar como Salto, desde a razão de ser ao Ser – sempre da linguagem – portanto, da Fenomenologia do Espírito à Lógica, da linguagem ao que ela fala, mas, novamente de modo especular, se respectivamente, da Parole à Langue.



          2)  Epistemologia

         Na Fenomenologia do Espírito cada um dos momentos está ligado aos outros, e tem seus elementos internos ligados entre eles. A filosofia de Hegel irá se desenvolver no caminho dessa sistematização do real pelo que todos os processos podem ser, no seu detalhe, descritos como integrando tríades, com os termos se pondo ou no início, formando a tese, o em si; ou no meio, como exteriorização, manifestação, antítese, o para si; ou no final, retornando a si como ser desenvolvido e manifestado, formando a síntese em si e para si.
        No Prefácio à Fenomenologia do Espírito Hegel enuncia esse caráter orgânico, sistemático, que deve ser o da filosofia devido à natureza mesma do ser que se apresenta ao saber ou ao trabalho da razão. Julio Bernardes, no texto A Crítica de Hegel à Teoria do Contrato desenvolve uma interessante exposição dos traços gerais da epistemologia de Hegel, propedêutica à interpretação de sua oposição à teoria hobbesiana do pacto social. Aqui o importante é reter os momentos constitutivos da dialética, isto é, desse processo de integração de todo elemento do real numa tríade.
         Os momentos pelos quais todo o conhecimento deve abarcar abrangem: a) aquele do conhecimento imediato ou abstrato; b) momento da reflexão e da mediação, negação do momento anterior; c) aquele do universal concreto como a positividade que preserva e compreende os momentos anteriores.
        O movimento do real compreende fundamentalmente o trabalho do negativo, a progressão dos termos no devir da contradição, e a a Suprassunção (Aufhebung) do que precede, da síntese ao novo processo que instaura sua tese. O que fundamenta é agora a impossibilidade de que aquilo que transita o presente não acarrete a oposição do que presenta como seu ser.
         Logo, impossibilidade de que aquilo que se oferece ao presente não esteja também de algum modo numa relação de oposição ao que lhe antecedeu, isso não apenas de modo circunstancial, mas permitindo compreender o seu modo de ser por essa contraposição ou relação ao que sucedeu. A contradição, até então algo antitético à lógica formal, conforme o princípio da identidade pelo que nada põe por si o seu oposto, se torna o motor da lógica do real na filosofia de Hegel. 
        A tríade que compreende a totalidade do real é a do Ser, Natureza e Espírito, conforme A Ciência da Lógica. O conjunto da filosofia de Hegel envolve a exposição dos momentos ou ligações dos três termos que compõem não só cada um dos componentes dessa tríade maior, como também de cada sub-tríade derivada deles. Completam-se vinte e sete termos em nove tríades, sem que, como observa Bréhier, se esclareça bem o nexo do fechamento do sistema.
          Aqui impõe-se a aproximação entre Hegel e Leibniz conforme observado por Hyppolite, pois o objetivo do sistema das tríades parece ser o mesmo que o projeto da linguagem universal: cobrir formalmente todos os aspectos do real, mas isso de modo que seja o conteúdo o que assim se abrange, o corpo do real que se tornou signo, o conceito que atravessou a barra da articulação e pôde se instalar no individual mesmo, já que o formalismo se encarna no discurso como o conjunto efetivo das possibilidades discursivas. Já Bréhier assinala a aproximação com Leibniz no contexto da Ciência compondo-se pela teoria da essência.
            Ora, o conteúdo da ciência efetiva, daquilo que no mundo se enuncia como conhecimento, é da ordem necessária da linguagem, expressando-se na forma de juízos que articulam sujeito e predicado pela cópula. Enunciar o saber é ao mesmo tempo declinar o Ser, afirmar o que “é”. A filosofia como Ciência do Saber, ciência da ciência, deve começar pela teoria do ser, mostrando, porém, que como ocorreu na história da filosofia, sendo o mais abstrato ou mais universal, o ser pode simplesmente ser negado como não-ser. O ser, negado como não-ser ou Nada, deve encontrar a síntese no Devir como movimento de recirculação entre os dois termos, ora do ser ao não-ser, ora do não-ser ao ser.
             Mas o devir se põe como evanescência, transição impermanente, portanto se limita ou se nega pela qualidade que é também contraposta pela quantidade. A oposição entre qualidade e quantidade tem sua síntese na medida, que quantifica a qualidade. Ora, a medida relaciona o Ser a si mesmo através das negações que conduzem ao quantum qualificado. É essa relação a si, identidade consigo mesmo, que constitui a Essência, a reflexão, portanto, sendo o que permite distinguir Essência e Ser
           A essência é expressão do real, mas de modo que aquilo que espelha é o movimento dos opostos que conduzem a ela enquanto manifestação no real daquilo que no ser vem a ser. A importância da teoria da essência no hegelianismo é ressaltada tanto por Heidegger quanto por Bréhier. Trata-se do nexo da dialética como pensamento especulativo, revertendo de certo modo a colocação “crítica” do transcendental kantiano, que havia apontado para a preminência da esfera prática.
        Heidegger assinala que speculari, significa “procurar ver, receber dentro do campo visual, compreender, con-ceber”. Ora, especular é compreender o oposto na sua unidade. A dialética especulativa do hegelianismo é o processo de produção da subjetividade do sujeito absoluto e sua necessária ação. A especulação está assim imbricada à lógica da esência que é o mesmo que lógica da reflexão, império da antítese que impele o movimento, a marcha da tese à síntese. O especular recebe sua eficiência do aparecer reflexivo, do espelhar da essência enquanto dialética da manifestação que compreende a oposição como movimento do Real.
           Assim se verifica novamente a aproximação com Leibniz, conforme Bréhier. O modelo da essência não é tanto a identidade, e sim a compossibilidade. A identidade já contém o princípio da distinção como aquilo que a relaciona às outras essências, como existências possíveis, isto é, na relação entre as essências já está assegurado que seu conteúdo seja manifestação no real, a substância, em seguida, se conceituando como o conjunto de seus acidentes. Mas essas perspectivas de proximidade entre Leibniz e Hegel não acentuam o que de fato, a meu ver, os torna irredutíveis, pois Leibniz pensa a compossibilidade como algo dado na mente de Deus, as regras lógicas que ordenam um mundo possível entre outras ordens compossíveis que formariam outros tantos mundos, enquanto Hegel está conceituando apenas o mundo histórico, onde todas as ordens, arte, saber, cultura, religião, moralidade, filosofia, história, além das realidades específicas de sujeito, natureza e sociedade, estão conjuntamente desenvolvendo-se no tempo.
          A teoria da essência percorre a história da filosofia, intentando mostrar como as noções que pontuam a teoria do conhecimento, de Platão a Kant, operam a progressão desde a exterioridade do espírito no Ser, à mediação, relação e reflexão, categorias que assinalam o percurso do desenvolvimento do autoconhecimento do espírito, isto é, o percurso especulativo, metafísico. Fundamento, existência, fenômeno, absoluto, realidade e outros conceitos que da história da filosofia são examinados por sua relação com esse caminho progressivo do espírito, conforme Chatelet.
           Resumindo, a teoria da essência mostra como o Absoluto ou existência pura se manifesta, e ao fazê-lo, se expressa naquilo que vem a Ser, substância, essências. Esse fazer do absoluto seria mediação consigo mesmo, de que as essências refletem os momentos como tudo o que pode ter sido, ser ou devir.
             A teoria do conceito reúne um tratado de lógica formal, os quadros conceituais da filosofia da natureza e a metafísica da Idéia. Bréhier assinala que a unidade dessas partes não parece fácil de se compreender, mas que o Conceito, Begriff, em Hegel, se põe como uma atitude mental que é vitória sobre a negação, liberação da oposição na síntese que implica sempre, de algum modo, como também esclarece Chatelet, o movimento do pensamento se conhecendo. Pois o conceito é a reconciliação do ser puro com suas articulações e da mediação reflexiva da essência manifesta como realidade unívoca do exterior e do interior. Ora, essa realidade essencial, ainda que unívoca, guarda algo de exterior puro em comparação com o conceito, pois a essência é necessidade, o conceito sendo liberdade.
             No conceito pensado se reunem os momentos do universal, do particular e do individual. A lógica formal é visada metafisicamente, conforme Bréhier, pois seus momentos, os juízos ou premissas, o termo que faz a mediação e a conclusão, são dialeticamente compostos como exteriorização que formaliza a multiplicidade desses elementos que entram no raciocínio, e reunião na Idéia que enuncia a totalidade do raciocínio, o saber. Aqui Bréhier novamente impõe a proximidade de Hegel a Leibniz, pois a monadologia também seria dialeticamente articulada pela exteriorização das mônadas enquanto individualidades independentes e sua ligação pela harmonia pré-estabelecida.
             Ora, objetivamente, na natureza, as forças são agregadas em sistemas cada vez mais integrados, do mecanismo ao quimismo e ao organismo onde o pensamento se manifesta na efetividade corporal. Em Hegel, o conceito se torna Idéia quando se reúne na Subjetividade, o percurso da essência ao conceito se tornando assim imanente a todos os modos de ser.
             Portanto, pode-se estender a Idéia como método que é ao mesmo tempo conteúdo, não havendo verdadeiramente objetividade fora da idéia, como acentua Bréhier, mas também não havendo idéia fora da objetividade, como sublinha Chatelet, isto é, não havendo conteúdo real diferente daquele que se impõe historicamente já que a ordem sistemática da idéia é o futuro, o que vem a ser: a natureza se revela exteriorização da idéia, o Espírito a sua interiorização, seja como espírito subjetivo, alma, subjetividade em si, seja espírito objetivo, onde se realizam as categorias da cultura como o direito, a moralidade, o Estado.
Essa enunciação da teoria do conceito contém uma crítica acerba do método dedutivo, em favor do método especulativo assim como o introduziu Hegel. É esse tópico que, a meu ver, torna tão polêmico hoje o hegelianismo.
           Vimos como a Fenomenologia expôs o percurso da consciência ao saber, operando com os momentos de sensação, percepção, entendimento, razão. Seria possível então pensar que há três grandes módulos desse percurso, do sensível, do entendimento e da razão. A novidade do hegelianismo é esse écart da razão, sua singularidade não apenas em relação ao sensível, mas também, e de modo particualrmente importante, por relação ao entendimento.
           O método dedutivo opera na base da abstração pelo que aquilo que está no sensível se torna objeto de uma separação formal, pelo que se antepõe o objeto da abstração ao seu conteúdo efetivo no devir, assim como o conceito à matéria. Se o conhecimento pudesse se limitar a uma operação do entendimento, o pensamento não poderia alcançar o absoluto, que é união entre conceito e matéria, como momento ulterior, no devir, dentro do processo pelo que os fenômenos vêm a ser. Na coisa mesma a separação que o entendimento faz para torná-la num momento inicial inteligível não ocorre, pois nela coexistem os aspectos assim opostos.
           Conforme Bernardes, o prefácio à Fenomenologia antepõe o alerta contra os procedimentos analíticos que não permitem a apropriação da coisa mesma como uma totalidade pela razão. Mas se a verdade que a filosofia especulativa almeja não pode ser nem o dado sensível nem o conceito puro do entendimento, a tarefa do pensamento como sendo a revelação de todos os momentos imanentes ao processo de constituição do ser da coisa que nela mesma porta o absoluto, o conhecimento se torna reconciliação com seu objeto, do saber com a verdade.
            Isso determina a leitura da história da filosofia como processo contínuo e interligado de momentos que têm sua culminância nessa supressão da metafísica do entendimento pela Metafísica Especulativa que corresponde ao hegelianismo. Ao mesmo tempo, o pensamento de Hegel se endereça como o novo modo de fazer filosofia, pois o correlato do saber não se põe como “objeto” formalmente instituído numa relação de exterioridade com o discurso da ciência, mas se tece por meio dessa operação do compreender ou apreender da idéia enquanto recorrência da coisa no Logos, nessa linguagem expositiva do saber.
           Podemos observar que se Bréhier aceita a Idéia como método, implicitamente ele está conceituando a dialética desse ponto de vista metódico, pois a reunião do conceito na idéia é essencialmente processo, identificação como síntese de sujeito e objeto. Bréhier afirma expressamente que a idéia existe nessa dialética imanente que compreende todos os modos do ser e os relaciona à subjetividade.
Também é essa a formulação da dialética em Heidegger, que sublinha o fato de Hegel designar a dialética especulativa como “o método”. Mas isso no sentido de algo que não seria um instrumento da representação, ou um determinado modo da filosofia proceder, e sim o “mais íntimo movimento da subjetividade”, o “processo de produção através do qual a tessitura da totalidade da realidade do absoluto é efetivada”.
             Essa identificação da dialética como método torna-se contestada em Chatelet e Hyppolite, o que penso poder-se compreender como possibilidade já instalada nessa ressalva de Heidegger e naquele conúbio de método e conteúdo na Idéia, proposto por Bréhier.
          Chatelet nega com veemência que esse “modelo lógico”, mais decisivamente a dialética que manifesta o mecanismo intrínseco ao desenvolvimento da linguagem da ciência pelo exame da tríade que abre a Ciência da Lógica, entre ser, não-ser e devir, seja um método. Pois como na Fenomenologia do Espírito, o que o texto da Lógica faz, conforme Chatelet, é examinar o movimento do pensamento que pensa, isto é, enquanto efetivamente pensante.
           A noção de método sugere uma grade que do exterior se impõe ou se aplica sobre um material indiferenciado. A dialética, inversamente, seria o critério da “pensabilidade” que no lance mesmo do pensar permite investigar as categorias de desenvolvimento do pensamento que pensa o Ser, o que repõe a história da Filosofia Ocidental, o clarão que se demarca como a eclosão do pensar sendo precisamente a interrogação grega sobre o Ser.
          No entanto, o que se desenvolve na Lógica são as categorias que suprem a carência do Ser, já que ele pode, na sua pureza pré-socrática e todas as vezes que se põe como início de um pensar-se, ser votado como o Nada, o não-ser. O ser só poderia se conduzir como aquilo que remete ao seu Outro, o que no devir se põe como Exterioridade, como o dado, o objeto, o obstáculo...
          Assim o texto se articula expondo a essência ou o Aparecer do ser, o conceito ou a ordenação do real na enunciação do pensamento que reúne as essências no juízo, e finalmente a Idéia ou autocompreensão do Espírito, captação do critério, do movimento que é, ao mesmo tempo, a plena reposição do Real.
          A objeção de Hyppolite é de enunciação bem mais complexa. Será preciso se deter naquilo que ele ilumina acerca desse tema no texto da conferência que pronunciou num simpósio sobre o Estruturalismo: “A estrutura da linguagem filosófica segundo o prefácio à fenomenologia do espírito, de Hegel”. Com alguma surpresa poderemos constatar que, se bem que vindo de uma perspectiva oposta à de Heidegger, por negar à dialética o status de um método, aquilo com o que o seu texto se articula repõe o paralelo que Heidegger estende entre o seu próprio pensamento e o de Hegel.

                                                                                                                     -------------------

    
                  Quando algo chega ao fim, se confunde com a sua história. A coisa que acabou se transforma na história que se conta sobre o que isso foi. Mas a própria história se torna, por seu turno, algo como o Signo da coisa, a sua estória ou reunião de fatos como nós de conteúdo que agora se tornaram partículas num récit. Hegel se pensou como o filósofo do fim da filosofia por ter completado a sua tarefa. Portanto, ele seria aquele que dela teria feito a história, não havendo mais nada para acrescentar. Ele teria estado então nessa posição do enunciador de um relato totalizante sobre a filosofia.
               Ora, Hyppolite localiza na redação do Prefácio à Fenomenologia do Espírito o momento de transição entre as redações desse texto e o da Lógica, pois Hegel teria escrito o prefácio após concluir a Fenomenologia. Nesse momento Hegel se debruça sobre o tema latente do que foi a filosofia que ele está completando. Logo, ele tem que tratar o tema manifesto do que é a filosofia não mais nos termos da coisa, mas da história, isto é, ele, como tendo se colocado no lugar do seu cumprimento, deve formular a transformação da questão da história da filosofia ou do que seria a coisa, em uma estória sobre o que uma obra filosófica deve ser.
             A questão começa, com Hyppolite, pela consideração do que é que uma obra de filosofia se torna quando a filosofia foi cumprida. O interessante é que Heidegger inicia sua preleção sobre Hegel e os Gregos exatemente no mesmo ponto, isto é, comentando sobre as vantagens de se unir num título Hegel e os gregos porque assim estamos acenando à totalidade da filosofia na sua história, como se houvéssemos reunido o princípio, os gregos, com o fim, Hegel. Mas a que isso vai levar, se não a se interrogar sobre o que é que sobrou para o pensamento? A filosofia se decompôs, migrando para as Ciências do Humano, a logística, a psicologia e a sociologia. Mas o pensamento “foge à verificabilidade pública” e, todavia, continua. Que é que ele pensa agora? Qual seria a sua questão?
            A resposta de Hyppolite sobre o que é que a filosofia se torna após ter se totalizado a sua história, torna central o tema da linguagem. Pois a filosofia mesma, enquanto obra, poderia bem se tornar algo como um entre outros gêneros textuais, e se trata então de resgatar esse estilo que não se confunde nem com a ontologia clássica, que Hegel teria terminado, nem com a Ciência que após esse acontecimento começa a crescer e vigorar. Mas, indaga Hyppolite, será que mesmo conceituando a obra como estilo, ele seria aquele da filosofia, ou apenas o da filosofia de Hegel? Se lermos “estilo” como “dialética”, o alcance da questão se torna patente.
              Quanto a Heidegger, sua resposta sobre a tarefa do pensamento após Hegel intercepta também o tema da linguagem, pois se o pensamento continua a pensar, o que ele pensa é o que vinha sendo efetivamente pensado e até por Hegel, a saber, o Ser, mas agora o modo pelo qual a questão se encaminha não se separa do modo pelo qual a linguagem se interpôs.
             E se interpôs desde Hegel, poderíamos suspeitar pela leitura de Heidegger, pois mais de uma vez, nesse texto e alhures, ele sublinha a ligação do pensamento de Hegel com o discurso da história da filosofia, tratando-se de mostrar que a relação que Hegel desenvolve com esse discurso intervém como acabamento, superação, totalização, na perspectiva do próprio Hegel que a teria re-escrito à luz dessa pressuposta realização.
              Ora, Heidegger intenta contrapor o seu modo de se relacionar com a história da filosofia ao de Hegel, assim como podemos contrapor os modos de se relacionar com algo de duas pessoas, uma que pensa o seu acabamento, outra que pensa a sua continuação. Hegel dialoga com a história da filosofia para cumpri-la, ultrapassá-la na revelação do Saber Absoluto que se atingiu de uma vez por todas. Heidegger conversa com os pensadores de ontem para compreender como é que eles deixaram por pensar a questão que é a do pensamento hoje.
              Poderíamos também agora suspeitar de que se trata, em ambos os casos, em Heidegger e Hegel, na necessidade sutil de transpor em algum ponto a história na estória, de se deter ante a tarefa de apresentar uma história da filosofia para transformar a cena num relato sobre como cada filósofo enunciou alguma coisa que conduziu à presença desses relatos que os recupera agora para enunciar algo mais sobre o que antes não disseram. Heidegger então conta uma estória sobre como Hegel interpretou a história da filosofia em termos de uma relação incondicionada com o pensado em cada pensador. E como ele mesmo, Heidegger, está às voltas com a tarefa do pensamento que é mostrar como cada pensador esteve às voltas com algo inteiramente outro, isto é, com o Impensado.
               O impensado tendo sido o esquecimento, a verdade estando na relação com o des-ocultar ou lembrar que há nisso tudo algo sempre ocultando e desocultando, é a linguagem que revela através da história o que é que se pensou nessa relação com o que foi que se esqueceu. Em todo caso, para Hegel ou Heidegger, são palavras que enunciam o pensar a cada momento do seu ser pensado.
             Hyppolite esclarece isso transpondo todo o conteúdo que se poderia ligar a “pensamento” em termos de “linguagem”. Nesse sentido, trata-se para Hegel na Fenomenologia, de lançar a relação consubstancial entre o pensamento e a linguagem, portanto, surge aqui o problema de enunciar o que seja a linguagem filosófica como concreção do saber absoluto e como o resultado daquilo que ela foi antes de antecipar esse saber – ou como tendo-o antecipado de modo abstrato, sem saber. Ora, a linguagem é sempre o que ela é, portanto, não há discurso filosófico que escape a uma relação com o discurso comum.
            A linguagem é aqui sujeito-objeto ou objeto-sujeito porque, conforme Hegel, nela o “eu” é subjetivo e ao mesmo tempo universal, os outros me compreendem como eu compreendo os outros naquilo que eles permanecem sendo o que são. Na linguagem o objeto se reflete no seu Selbst, o pensamento sendo ao mesmo tempo sujeito e objeto. A linguagem se torna consciência universal do eu e do Ser, portanto, ela é Logos. Mas o que o logos articula desde o balbucio até a expressão mais plena do saber é sempre instaurado pelos shifters: os pronomes pessoais, o eu e o tu, estão em jogo tanto quanto as determinações originais do este, do aqui, do agora: o que o Logos articula é o individual com o Universal em cada enunciação.
           Mas a relação da linguagem deveria se tornar, entre os falantes, não simplesmente o acordo sobre o mundo. Para Hegel a aproximação da consciência comum e da Ciência se faz como Fenomenologia, pois o que a ciência descobre ou enuncia é o modo de ser da consciência comum enquanto consciência de mundo, isto é, enquanto uma relação pela qual a subjetividade se põe naquilo que ela sempre é. A consciência comum tem que se reconhecer no que a ciência descobre, se a ciência se volta a ela e enuncia o que descobriu.
           O processo dialético não seria um método, mas um estilo do pensamento filosófico, pelo que nele não há uma relação do exterior com o objeto, mas o deixar falar do objeto no discurso da filosofia. Ora, conforme Hyppolite esse estilo seria o que Hegel atribuiu às obras filosóficas, desde que renuciassem ao formalismo que reduz o objeto ao núclo incognoscível para só compreender esquemas de relações, ou ao materialismo que permanece inconsciente de sua ligação com o conteúdo que ele concebe numa independência perfeita.
            A oscilação entre a Fenomenologia e a Lógica deveria localizar o ritmo desse estilo pela contraposição dos dois projetos que o animam: o que penso que se poderia designar como a prosa do mundo, pois nele trata-se do filósofo que fala à consciência comum para revelar o que ela é na sua verdade, uma articulação da linguagem que expõe o devir efetivo em que ela mesma só pode ser; mas também o que seria a poética desse mundo, quando se trata de traçar as determinações ou a arquitetura da linguagem universal pelo que tudo só pode ser exposto, falado, uma vez que é pensado.
          Ora, o que Hyppolite não questiona explicitamente é essa ambição de algo ao mesmo tempo singular e universal, esse conceito de Subjetividade que depende de uma apropriação do ser da linguagem para investir-se como Metafísica. Pois ele parece aceitar como cumprimento a transposição da linguagem como realidade totalizante em termos de consciência universal que ao mesmo tempo declina o “Ser” e o “Eu”.
Mas deveríamos nos perguntar se não reside nisso a ilusão de Hegel. Pois a magia – a metafísica - da linguagem consiste justamente na mistificação da estória que mistura a coerência com a enunciação transfigurando o acontecimento numa narrativa – eis a ilusão da dialética que deveria competir ao filósofo, justamente, denunciar.
         Que a possibilidade do conhecimento esteja na linguagem devido à sua articulação gramatical, o seu sistema de relações que circulam a interlocução e o juízo, é o que precisa estar em jogo quando se trata de interrogar o ser da linguagem e do conhecimento, não o que deve estar pressuposto em ambos pelo enraizamento do falar na enunciação do Sujeito.
         Ao reservar o problema da relação entre referente e significação como válido, ao mesmo tempo que resolvendo-o em termos de universal concreto – o mundo é afetado pelas significações, há comunidade entre eles – é o “eu” que se torna o suporte da universalidade, enquanto constitutivo da linguagem, em ato, e nela constituído essencialmente. Ora, Hyppolite, que assim coloca a questão, registra que só a linguagem constitui a função sujeito, mas não explicitamente mostra o fato de que se assim for, a linguagem não poderia sustentar, como estrutura metafísica, o Absoluto da subjetividade enquanto dialética ou lógica do Real.
          Inversamente, isso comprometeria o sistema de Hegel, e teria que conduzi-lo a um repensar da história da filosofia, pois não haveria como estabelecer a necessidade dos significados da linguagem, aquilo que emerge na história, na exterioridade do acordo transitório que se expressa nos seus momentos Significantes.
          Ou então Hyppolite desejou mostrar que era isso mesmo que Hegel estava afirmando, a saber, que se a linguagem é estilo como expressão fundamental de certa cultura, ela é a retórica dessa cultura, o acordo como estória que se pode contar sobre o que tal cultura, historicamente, foi. Consiste isso na ultrapassagem do elemento universal da linguagem, da sua capacidade de ajuizar o real em sínteses tranqüilizadoras do tipo com o que a crítica da razão pura costuma lidar, os shifters que encetam relações entre os termos da experiência.
        Se a linguagem já não se delimita pelo elemento universal, tornando-se uma pragmática, uma retórica do devir, todos os gêneros que se envolvem numa relação com esse devir se transformam, forçosamente, em romance. Mas esse romance pode ser uma representação do que é expressado no mundo ou a estória sobre como o mundo é expressado em qualquer romance possível. A representação é o elemento dos romances do mundo encenados pelos discursos religiosos e estéticos. A filosofia é o estilo, gênero ou romance que mantém uma norma de verdade, isto é, aí onde o enredo é a essência da linguagem, a operação da significação.
           Contudo, se compreendemos Hyppolite, esse resultado seria profundamente irônico. Pois ali onde só há representação subsiste a crença inabalável no efeito da expressão, enquanto que lá onde se deveria radiografar a representação, o que restou se limita a uma contrafação da verdade, no entanto, assegurada como norma do contrafazer. O que reverte esse resultado desalentador é a espessura da linguagem como locus da subjetividade universalizada, pelo que tudo é para o Sujeito, pelo Sujeito e subjetivo. Não subsiste coisa alguma na exterioridade.
           Portanto, a norma da verdade se assegura a si mesma e nada está perdido, a não ser as significações plenas naquilo pelo que desconhecem ou recusam o conhecimento da falta de sentido que reveste essencialmente a significação, mas essas sombras são as que repousam na linguagem e insuflam todo romancear.
           Ora, Heidegger vai interrogar esse estatuto do sujeito que permitiu a Hegel tornar a dialética o estilo da imanência, via linguagem conforme Hyppolite. O problema aqui é o que persegue toda fenomenologia naquilo em que ela desdobra uma teoria do conhecimento a partir de uma articulação de consciência, experiência e Real. A verdade a atingir, isto que na epistemologia tem que se expressar de modo frangmentado por corresponder aos setores do conhecimento especializado, mas também reunir-se no fundamento, assegurando os papéis da essência, do conceito e da idéia como no texto de Hegel, se tornou aqui a Evidência absoluta do sujeito que se sabe a si mesmo – ou, poderíamos também afirmar, o saber verdadeiro é o saber que se sabe, no hegelianismo.
          Heidegger questiona esse resultado, pois para ele o verdadeiro do saber, ou evidência, é precisamente que não se pode saber absolutamente, que não ocorre o pensar fora de uma relação essencial com o não-pensado. A redundância se instalou como sistema metafísico de linguagem, desde que se fixou o funcionamento do todo na articulação do Sujeito nela centrado e nela centrando-se - aqui Heidegger parece ter esquecido a alteridade que Hegel instalou como extrusão e alienação, no movimento de duplicação da experiência do ser do Selbst. Assim, em todo caso, as avaliações de Hegel e Heidegger sobre os gregos são opostas.
           Hegel pensa os gregos como o “ainda não” do saber, que por dizer apenas o Ser não alcançou o absoluto que é Sujeito. Heidegger pensa que por ter deixado enigmático o estatuto de quem fala na verdade como Aléthea, os gregos enunciaram a questão do pensamento que resta ainda como a do presente – pois não seria justo argumentar que o desvelamento, sendo para alguém, já põe a subjetividade naquilo em que só se desvela enquanto o falado, o pensado na linguagem, e que é sempre o sujeito quem fala na linguagem.     
             Heidegger argumenta que é a desocultação que fala naquilo que é falado pelo enunciador, esse, sim, o sujeito para quem a linguagem fala, sendo também em quem a linguagem permanece, mas assim a questão se desloca inteiramente do âmbito do absoluto como subjetividade.
           Creio que nisso se pode propor que a redundância opera mesmo na interpretação pela qual é a retórica que articula a realidade como significação dialética do Real, já que assim haveria convergência entre a Fenomenologia e a Lógica, como o Significado está para o Significante. No entanto, penso que aqui há abismo. A Lógica se mantém como a possibilidade do discurso, a Fenomenologia como a sua efetivação significante, mas nenhum desses casos cumpre o que enuncia, pois há sempre o perseguir do conteúdo na forma, inversamente à propalada unidade que Hegel teria assegurado entre ambos.
           A dialética deixa escapar o Real, naquilo pelo que ela se designa portadora do vir a ser mas não pode efetivá-lo enquanto significado, não pode antecipar o acordo futuro do mundo, finalmente não pode antecipar-se no que não se limita a ser um discurso sobre si mesma. Torna-se um pressuposto do saber, mais do que sua realidade. O que Hegel não deixou de pressentir, como observa Chatelet, arquitetando o sistema de modo que tentar definir a ciência seria trair seu ideal, independente do fato de que a Lógica deveria ser o texto que realiza precisamente essa tarefa de definição.
            Mas, de fato, no hegelianismo o saber é apenas o sabido. É a banalidade de tudo o que se pode dizer, afirmar ou negar. Mais o seu código pelo que todo o infinito das afirmações e negações se enquadra num sistema classificado e identificado, uma Enciclopédia que organiza, conforme o que já vimos na Ciência, todos os processos do devir.
           Pergunta-se pela crítica, especialmente a crítica social, nesse sistema. Parece não haver possibilidade alguma desse intuito. Mas Hegel poderia contrapor: a crítica do devir é seu próprio vir a ser... Hegel não é um filósofo facilmente apreensível. Entre Hyppolite e Heidegger, muitas obras importantes foram marcadas, de um modo ou outro, por esses escritos estranhamente mesclados de um tão profundo conformismo, mesmo exaltação do fato como expressam alguns, e uma implacável desconfiança perante tudo o que se põe.
            Penso que a esse Hegel situado, a síntese do pós-kantismo, se contrapõe um Hegel subterrâneo, pensador artificial que devolve a Heidegger a sua indagação. Pois um ser que fosse inteiramente o que ele é, esse ser fenomenotécnico de que falou Bachelard, constituiria o escândalo hermenêutico, mas não teria Hegel já lidado com ele?
           Hyppolite assinala que Hegel tinha um sentimento da natureza artificial da cultura, uma fascinação pelo escrever. Pois nesse hiato entre o que se recolhe na escritura, na linguagem, como verdade do referente, e a realidade desse referente, está a dobradura que instala a questão que era a da filosofia, mas que se tornou a da linguagem. Loewenberg, participando da Controvérsia Estruturalista e interpelando Hyppolite após o seu pronunciamento, observou precisamente o ponto em questão. Por um lado trata-se de indagar se há um grande jogo da linguagem, ou nos termos em que ele coloca a questão, uma linguagem genérica, que agrupa todas as outras como espécies, ou se cada jogo, cada linguagem, é sui generis.
           A questão desdobra a duplicidade que acena à linguagem da filosofia de Hegel, pois o que observei quanto a isso, Loewenberg enuncia do seguinte modo: haveria uma fenomenologia humanista, que trata da consciência, da auto-consciência e da razão. Mas também uma fenomenologia anti-humanista, que apresenta o Espírito absoluto, ser auto-revelador e auto-suficiente como presença da Idéia em qualquer manifestação da cultura que se torna assim auto-justificada. Antes de nos apreendermos como consciência, somos o movimento necessário dessa apreensão. O que está por se resolver quanto a Hegel, é o como da sua conceituação desse necessário, pois pode ser que ele não o tenha sobredeterminado à narrativa histórica sem deixar um espaço para o movimento do pensamento (inconsciente ou linguagem/desejo) pondo-se na efetividade de pensar (consciência/saber). Heidegger certamente se instala nesse intervalo, mas para ele o que ocorre aí é a binária oposição já do sentido, entre ocultar e desocultar.
          A tensão parece instalar-se no interior da própria fala de Hyppolite, pois como vimos, há razão para indagar se ele leu Hegel em termos do anunciador de uma retórica da cultura como se isso fosse o próprio Hegel ou seu resultado irrefletido.
          O problema aqui é que a tradição considera Hegel no extremo oposto desse operador retórico, identificando-o com o filósofo da auto-justificação da ideologia. Afinal, a dialética – isto é, a linguagem da ciência como Hegel a conceituava – é um instrumento de negociação entre os seres humanos ou algo que engloba todo o pensável de modo que o humano só pode estar na subsunção a isso? Mais profundamente, porém, creio que o problema é que mesmo que se considere Hegel de um ponto de vista mais atual, rejeitando seu anti-humanismo para vê-lo como alguém que enunciou o elemento da linguagem como aquele da libertação do ser humano, a dialética pode se entender de um modo que perverte essa possibilidade tal como na atualidade as propostas de éticas universais, que desconhecem a natureza intrínseca do elo social e o delimita no elemento imperialista da lógica racionalista.
        No entanto, a compreensão desse elo também pertence, paradoxalmente, à filosofia de Hegel, quando por exemplo, ele acusa o iluminismo de não assimilar o significado do fenômeno religioso quando antepõe à adoração dos objetos sagrados – por exemplo, a transubstanciação do corpo de Cristo na hóstia ou no pão – uma simples fantasia dos fiéis, quando o objeto continua lá, na sua irredutibilidade de coisa, na sua pura utilidade e exterioridade. Mas esse objeto adorado não tem a natureza do objeto coisa que é o do iluminista ou do mesmo fiel quando na sua consciência comum. O que a religião resgata é o elo de significado do real que o religioso experimenta como criação do espírito, da consciência do real,  logo, como convicção de sua própria consciência.
         Também o fato de que a dialética é processo deveria pôr a impossibilidade do absoluto ser suposto uma totalidade, já que nunca o termo repousa, por assim expressar, já que nunca há devolução ao sujeito tético mas sempre ultrapassamento no real. Finalmente, Hyppolite nega que a filosofia seja romance, ou mesmo gênero textual, para Hegel. Trata-se sempre de um jogo no interior da linguagem comum, mas sem que se possa evitar torcê-la numa espécie de jargão, já que a realidade do que se expressa na filosofia se expressa de um ponto de vista a-subjetivo enquanto a linguagem comum só pode evoluir no elementos dos shifters, eu e tu.
           O resultado ficou ainda mais paradoxal, parece-me, pois anteriormente Hyppolite havia ancorado na subjetividade – como aliás o faz o próprio Hegel – o processo do real, mas isso de modo que o sujeito seria sempre da linguagem e nela, o que conduz esse processo do real ao Saber.
         Mas o que Hyppolite afirma, se o compreendo, é que todo o nó da questão se resolve pela conceituação do Absoluto hegeliano, que não está contraposto à flutuação, à retórica, à pluralidade dos textos e dos estilos, como à história – isso sem deixar de ser filosofia.
           Creio que se adotarmos Schelling como um termo de comparação com Hegel, poderíamos supor que o Absoluto do schellingnismo foi transposto por Hegel, desde uma imagem móvel do eterno, que tem em potência a matéria e o espírito como aspectos da identidade possível, sendo o absoluto toda a identidade necessária, a uma realidade que por necessidade de ser manifesta o que é. Ora, a manifestação já impõe o movimento no manifestado, criando novo modo para lidar com a alteridade. Já não se trata do Outro como identidade oposta ao mesmo, porque não se trata de um mesmo que seria sempre igual. Trata-se sim de uma realidade que se desenvolve, manifestando-se, tornando-se paradoxalmente o seu vir a ser. O sujeito do processo é o tornar-se, como bem observou Hyppolite.
         Até aqui poderíamos então ler Hegel como Heidegger, não de modo como o próprio Heidegger se contrapôs a ele. Mas o que me parece coibir essa via é também o que, como já assinalado, mantém o nexo de Hegel com a filosofia moderna. Pois a dialética não se pôs como processo sem ter se sobrecodificado como processo de negação. Creio ser isso o que acarretou a polêmica quanto à posição da Lógica, sua pretensão de enunciar a totalidade do saber sem poder, obviamente, se estender nessa totalidade ou se confundir com ela. Mas também quanto à proposição desse absoluto como Subjetividade, o que parece estar na raiz do processo ter sido pensado como negação.
           O que se criou parece ter sido o Mito da cultura. Por que a cultura sobreveio como processo inapelável dessa Subjetividade e/ou por que, enquanto sujeitos da cultura, os seres humanos não podem deixar de negociar para si mesmos exatamente o que a cultura deveio. A circularidade aqui torna-se manifesta, como Loewenberg também notou. Mas o que faz a malícia do pensamento de Hegel é que ele evidenciou o problema que se instala por essa barra: seja por que o fez de modo refletido, como o que sentiu ser a angústia da condição humana, ou por que o performatizou como fissura da totalidade sempre presente, sempre inalcançável.

                                                                                                                        -------------------

            Em todo caso, a lição epistemológica de Hegel, qual seria? Após Kant ele teria inovado, induzido a um tipo de relativismo do saber, ou, inversamente, teria re-estabelecido metafisicamente a garantia do conhecimento? Parece que ao invés de uma resposta menos controversa, a essa indagação só resta a consideração pela qual é preciso já se ter uma leitura do hegelianismo para responder, ora como Chatelet – não, a dialética não é método, não há Saber decisivo, Hegel pôs fim à ilusão metafísica – ora como Bréhier, mostrando que a identidade de método e conteúdo na Idéia dialética se destina a garantir a perfeita identidade entre cada degrau do ser e a interioridade espiritual de que ela é desejo.
             Há certo modo de se opor história e estória particularmente esclarecedor quanto a essa controvérsia acerca da epistemologia de Hegel. Aqui o esencial é a indagação sobre quem fala. É consensual a posição, em relação à história, de que nela não ocorre a função do narrador. O historiador apresenta a história, sabemos, mas a economia do gênero se caracteriza pelo fato de que é como se a história se contasse por ela mesma. Quanto à estória, há polêmica sobre a função do narrador.
           Alguns autores sustentam que só se pode aceitar que há narrador quando suas marcas de enunciação são explicitamente recuperáveis no texto, isto é, dependendo dessas marcas estarem no texto por correspondência ao pronome pessoal “eu” como atribuído pelo narrador à sua atividade de fala de que decorre a estória. Outros autores pensam que desde que há narração, ou seja, desde que não se trata da simples fábula, onde não ocorre a construção textual como estória narrada, mas apenas a abstração da estória, então a função do narrador está implícita.
          O que se poderia indagar então, se a filosofia houvesse mesmo sido transformada em gênero textual ou estilo, é quem fala nessa linguagem. É essa mesma indagação que Hyppolite desenvolve como base de sua argumentação, mas me parece que o que impede que ele sustente sem ambigüidade essa tese da transformação genérica – alhures ele sustenta mais seriamente que a transformação efetuada por Hegel foi a da metafísica em lógica – é que se Hegel fez da filosofia uma apresentação da consciência comum, ao mesmo tempo o que se tornou patente foi a sua transcrição numa história do saber.
         Hegel teria visado a consciência numa relação constitutiva com aquilo que para ela é ao mesmo tempo o objeto e o ser, sendo a consciência sempre e a cada vez o que ela é enquanto determinação necessária, mas mediada pelo momento, do seu objeto, daquilo que se afirma na linguagem ligada pela cópula. O momento aqui resume o todo da articulação especulativa, sendo não apenas um momento casual no tempo, mas um instante num encadeamento lógico do real.
          No entanto, o que permanece ambíguo no texto de Hyppolite é que se assim for, à indagação de quem é que fala no discurso filosófico a resposta só poderia ser: Deus mesmo é quem fala na filosofia, pois nela a consciência fala sempre e somente a coisa mesma.
          Ora, pelo que vimos da oposição entre história e estória, e como o especulativo tornou o elemento do tempo tão fundamental que transformou a filosofia num récit, narrativa ou Darstellung, exposição, não podendo ser mais do que isso numa fenomenologia, e limitando toda lógica a ser apenas o arcabouço desse fazer narrativo, mais o agravante de que não sobra mais nada no real para explicar na exterioridade dessa Lógica, razão pela qual ela se apropriou do que pertencia até aqui à metafísica, pelo que vimos, desde que alguém fala na história ela já não pode ser história e se tornou estória.
          A resposta de Hyppolite parecia destinar-se a conjurar a hipótese que ele mesmo havia apresentado, com a qual havia flertado, de uma impossibilidade da filosofia ser mais do que romance, mas ironicamente só fez reafirmá-la. E tanto mais que a cada “história” com que se ocupa Hegel – a da arte, a da filosofia, a geral – é sempre um récit de momentos constitutivos que por si não tem autonomia e só recebem seu sentido de uma circulação do universal que se manifesta no final, mas que era o que estava se manifestando desde o começo. Há sempre uma Voz oculta, portanto, a da subjetividade que se desvela no seu accomplissement, acontecimento de sentido que é a Idéia finalmente recolhida no seu sentido fundador pelo desenvolvimento dos seus momentos, do mais exterior a ela até o seu mais íntimo desvelar-se.
          Aqui o fundamental para nós reside na inversão epistemológica operada por Hegel através da dialética como processo especulativo de tessitura do real. Para compreender essa epistemologia do hegelianismo – se bem que já a vislumbramos no exposto, de certo modo – é preciso enfatizar o meio novo, seria melhor “inusitado”, pelo que Hegel está lidando com a noção de “experiência”.
         Sendo a experiência o experimentado, a Fenomenologia opera de modo que aquilo que à consciência do narrador da estória da consciência se apresenta é a experiência da consciência nela mesma, isto é, a experiência da consciência comum. Mas como o experimentado pela consciência comum é a variação das suas figuras sucessivas, o que faz dessa sucessão uma estória, não uma história, é a suposição de que o experimentado é o que se vai enunciar duas vezes, como conteúdo e forma do Saber da consciência sobre sua experiência.
         Como conteúdo do saber do narrador, porque ele poderá sempre mostrar que essa experiência da consciência comum, por exemplo, a religiosidade, está apresentando abstratamente, numa experiência material do seu sofrer, sentir, adorar, etc., aquilo que posteriormente será recolhido como forma de si, pela mesma consciência, pelo que ela realiza a verdade contida abstratamente lá, mas isso de modo que essa consciência que recolhe é ao mesmo tempo duplicada na consciência da consciência dessa experiência, narração “off” , fenomenológica, ou Voz do saber.
        Então a duplicação do que já estava se apresentando como duplo é ascese. A consciência ascede ao saber filosófico reconhecendo o que havia estado em jogo, no exemplo da religiosidade, a emancipação da consciência sobre a exterioridade material. O “sobre” assinalado reabsorve a duplicidade dos duplos, porque a verdade da síntese se enuncia “por sobre” a experiência, não somente sobre ela no sentido de “com relação a”, como um estrato geológico ou uma cidade antiga encimam o que lhes precede. Ainda que essa expressão possa parecer tosca, ela repõe a materialidade a que Hegel parece submeter esse tempo conceitualizado. Assim, também Althusser sublinhou que Hegel define o tempo como “der daseiende Begriff”, o “conceito na sua existência imediata, empírica”.
           O genialmente irônico em Hegel é que isso conduz ao exato oposto do empirismo, isto é, a uma completa destituição da pretensão do saber ser Mesmo da experiência, sendo o saber sempre realização da Idéia. Mas recirculando o paradoxo epistemológico assim criado pela estória, pelo fato mesmo de isso ter se tornado estória, isto é, pela projeção do duplo, tema romântico por excelência, no saber, a Idéia realizada é o Real reabsorvido na sua mais seca reificação, de modo que não há real fora do Real, coibindo-se qualquer via crítica, de alternativa a esse Real que se presenta assim.
           Quase seria isso um empirismo às avessas, como se o Duplo assegurasse o Mito da Experiência, o que também viu o jovem Marx como a inversão epistemológica do universal, assegurada pelo hegelianismo.
Marx começa por estabelecer firmemente o que habitualmente é a empiria. Isto significa resgatar aquilo que nós sempre sabemos sobre as relações do sujeito com o predicado, do particular com o universal, enquanto que Hegel nos apresentou essas relações tão estranhamente invertidas, mas como ele apontou como prova do seu procedimento o Real – no entanto, subrepticiamente conceituado pelos critérios do próprio procedimento – o receptor é conduzido à impotência em desmentir que assim as coisas são.
           Essa crítica de Marx, nesse momento inicial, a meu ver, permite comparar o processo de Hegel aos atos do mágico no palco, porque o subreptício do seu proceder é na verdade o mais manifesto, só que envolto numa seqüência de gestos, duplicações e aparências, de modo que o que aparece é apenas o que ele intentou fazer parecer.
          Marx mostra então em que habitualmente a experiência consiste: o predicado é dependente do sujeito, se reduz a uma atribuição do sujeito. Mas se a subjetividade é também uma determinação do sujeito, isto é somente no sentido pelo que a personalidade é uma determinação da pessoa. Ora, Hegel faz com que o predicado pareça independente do sujeito. Ele é o momento do absoluto, elemento a se reunir na Idéia, o sujeito a que é atribuído se tornando apenas um suporte da sua atualização.
          Como suporte da atualização do predicado, o sujeito desse tipo de proposição lógico-especulativa-acontecimentual é apenas, fenomenologicamente, a existência mesma do predicado, por isso o sujeito se torna a existência da Subjetividade como sua parcialidade empírica, um momento dessa Subjetividade absoluta. Marx então desfaz a inversão de Hegel, mostrando que o que o que se deve proceder é ter o sujeito real considerado na sua objetivação, sua efetividade, como núcleo estabilizador da atribuição, por relação ao qual qualquer predicado pode ser atribuído. Isto sem que no limite o sujeito seja parcialmente distribuído na totalidade de uma Subjetividade abstrata.
         Hegel parte dessa inversão porque considera inicialmente o universal. O raciocínio permanece inteiramente circular: por que se deve iniciar pelo universal, e o predicado é o universalmente atribuído, então o predicado é o universal pelo que se deve iniciar. Mas por que se deveria iniciar assim Hegel não poderia jamais esclarecer, já que se trata de uma simples petição de princípio - no entanto, se Hegel iniciou assim é o que tanto se tem indagado atualmente, uma vez que ele procedeu sem dúvida uma crítica da representação, enquanto Marx estava reduzindo a consciência à capacidade de representar a facticidade. O que subjaz  à concepção de Hegel, conforme Marx, seria a suposição pelo que o Universal desfruta de uma superior consistência ontológica, tudo o mais devendo-se ao desdobramento dialético do universal substancial que se pressupõe como totalidade capaz de “resolver” a diferença que ele mesmo gerou.
         Compreende-se por que Hegel afirma que o absoluto da diferença é ser ela diferença nenhuma.   inversão toca, portanto, conforme Marx, na contraposição do conteúdo com a forma, pois o que se anuncia como conteúdo do saber, o processo do real, jamais será outro que aquilo que se enunciou como a sua forma mesma, isto é, como vimos, o fato de que não se acede a nenhum conhecimento que não ponha o mesmo que já está na experiência comum do real, se garante ironicamente pela ascese fenomeno - Lógica do saber dialético.
           Jorge Dotti, que apresenta essa crítica de Marx no texto “A Crítica do Universal Hegeliano em Marx e Stiner” , observa, porém, que ele não recusou a dialética de Hegel, apenas mostrou que seria preciso revertê-la. Hegel teria visto o que era preciso quanto à instauração do processo dialético, mas não pôde conduzi-lo convenientemente porque previamente se instalou numa suposição substancialista-idealista. Inversamente, Marx propôs que a dialética deveria partir dos sujeitos efetivos, empíricos, para mostrar as contradições geradas, sim, mas materialmente pelo seu enfrentar-se e estabelecer-se, não pelo simples modo de ser da idéia desde o início instalada como o sentido do processo e de seus momentos opostos constitutivos. Assim, não haveria uma Idéia no final como realização atual, o que vemos ser como o sujeito, o Estado, a história já feitas, mas processo atuante no devir em que os agentes precisariam engajar-se, só que agora, conscientemente.
             Creio que se pode mostrar como a dialética, interpretada ao modo de Marx, prejudicou o marxismo, ao notar que os caminhos da renovação pós-stalinista foram marcados de um modo ou outro por tentativas de atenuar os pressupostos dessa “lógica” do devir, recuperando a autonomia, seja do sujeito, na vertente humanista, seja da estrutura, na leitura de Althusser. Esse tópico deveria repor a controvérsia sobre a epistemologia do marxismo, pelo qual confrontam-se as versões do Marx empirista e do marxismo estrutural. Em todo caso, é da perspectiva epistemológica que Marx desenvolve sua crítica a Hegel.
           Aqui, porém, creio que o mais oportuno é notar como Hegel estava convencido de ter realizado exatamente aquilo que Marx o acusa de jamais ter feito, a saber, superar o idealismo na sua “absolutização indevida do universal”, conforme a expressão de Dotti. Pois a crítica de Hegel a Kant consistiu nessa mesma acusação, pelo que qualquer objeto ou comportamento podem ser justificados como meio para a realização do Universal, fosse o universal abstrato kantiano, o imperativo categórico, ou a noção autoconstruída do Absoluto de Schelling.
            Hegel pensava que seria preciso mostrar como o devir se torna o que ele é, crendo que a dialética poderia suportar a lógica “manqué”, não expressa, desses idealismos. O crucial aqui é sua noção de experiência como aquilo que já está fundamentando o processo lógico-especulativo da concretude do universal. Resultado, mais uma vez, profundamente irônico. Em todo caso, é de se acentuar que esse viés se tornou interpretável como o que impede localizar Hegel no Romantismo, como observou Bréhier, inversamente mostrando que nele se demarca a transição ao positivismo, a meu ver algo estritamente relacionado à ambientação estilística do Realismo.
            Mas Hegel não tem o estilo realista. Essa contraposição de estilo e visão de mundo é mais um dado da estranheza de Hegel, sua genialidade bizarra, tanto mais que ele foi o arauto da unidade forma-conteúdo. No entanto, o que ele preconizava como essa unidade era a presentação fenomenológica do pensamento no pensado, isto é, da coisa ou processo no relato ou estória.
           O problema nisso foi que a Unidade estava sendo pressuposta como a Voz da estória, o narrador onisciente como Subjetividade absoluta, enquanto que estilisticamente ela é construída pela pressuposição estética inversa, a saber, de que a estória está sempre na iminência da fábula, de que a Voz que narra só pode ser autônoma se constrói suas próprias marcas, ou, na posição teórica oposta a essa, como uma função da narrativa na sua dependência desdobrada como autonomia em relação à fábula.
           Visto por esse ângulo, Hegel permaneceu idealista asism como seu estilo tem a “altura” do Romantismo. Contudo, sua epistemologia invertida, precisamente pela relação fundadora à experiência, oferece um interessante paralelo com o positivismo, e isso como acentuou Bréhier, inclusive no tocante ao projeto Enciclopédico dos conhecimentos. Pois aqui, prolongando sua crítica acerba do século XVIII iluminista, trata-se de mais uma estória, agora dos conhecimentos efetivamente evoluindo no campo do saber enquanto disciplinas ou áreas a se estabelecer como ciências.

                                                                                                                ----------------------

               O projeto enciclopédico de Hegel almeja abranger numa mesma composição o fato e o sistema do saber. Assim como a Enciclopédia dos iluministas, trata-se de reunir o conjunto palpável das produções efetivas, mas o sistemático aqui se deve ao caráter pelo que se reúnem essas produções, de modo algum numa disposição fortuita, por exemplo numa ordem alfabética, mas fazendo a realidade se pôr pelo sistema nesse seu ser real.
           A crítica implícita à epistemologia iluminista está nisso pelo que o fortuito de sua apresentação não oferece o nexo do conceito ao ser. Ambicionando o ultrapassamento da metafísica por um suposto acesso imediato ao real, via recepção de seu ser assim na ipseidade da experiência, o que se fez foi ignorar o problema que restou inteiro como aquele que pertence à filosofia, a determinação racional - ou meramente apreensível - do ser e da realidade.
           Também a crítica vai portar sobre as concepções racionalistas-naturalistas que unem os românticos aos magos do Renascimento e aos filósofos da natureza helênicos, que vêem a extensão do racional no real como uma continuidade estática do espírito.
            É preciso localizar no real, se a experiência se tornou, nesse novo modo de filosofar, o texto a traduzir na linguagem especulativa, a progressão que conduz do mais exterior, do mais oposto a si do espírito, ao que lhe é mais interior e mais reunido, realização do Selbst. A Enciclopédia se torna o pretexto desse exercício de escalonamento espiritual do real, não de modo contingente, mas pelo fato das ciências, de modo fragmentado, já que cada saber só evolui na imanência de suas próprias questões, métodos e instrumentação, estarem realizando a propedêutica a esse intuito por ter setorizado um estamento, um momento concretizado no todo do real.
            Assim, inicialmente há a oposição geral entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, Naturphilosophie e Geistewissenschaften. Ora, entre esses dois grandes ramos do saber há progressão, não continuidade, no sentido do absoluto. Sendo assim, Hegel interpõe críticas assinaláveis também às concepções correntes de filosofia da natureza. Trata-se, fundamentalmente, de coibir a noção de que as formas derivam umas das outras analiticamente, isto é, devido à sua compartimentação na extensão material. Muito inversamente a Schelling, e bastante próximo de Comte, Hegel não pensa que o mundo seja um todo. A natureza material seria apenas um modo ou momento da vida da Idéia, o segundo estágio do ritmo que conduz do ser inicial ao espírito final.
             Portanto, no interior da natureza seria sensato esperar recuperar o mesmo ritmo ternário dessa atitude mental especulativa que desenvolve a manifestação e a realização da Idéia, o que equivale também a coibir o estudo da natureza sob a forma do entendimento que define na exterioridade do objeto. Essa atitude intelectual conduz a Naturphilosophie a algo bastante oposto aos métodos das ciências empíricas, efetivamente se desenvolvendo nessa época. No entanto, Hegel se utiliza de seus resultados experimentais, recenseando pesquisas importantes em setores de observação natural como por exemplo os trabalhos de Heim sobre os cristais, de Biot sobre a refração e de Berthelot sobre a eletricidade.
           Mas ele critica acerbamente as teorias estritamente científicas, como a de Newton, por oferecerem explicações gerais com base na autonomia do objeto. Os resultados de Galileu e Newton, assim como os da ciência em geral, são utilizados no intuito de se os transmutar conforme o método dialético-especulativo, considerando cada forma dada não naquilo que ela pode ser para o entendimento e sim naquilo que sua natureza exige interiormente, enquanto momento da Idéia. A ciência em si não está sendo criticada, mas a generalização de seus resultados numa visão fática do mundo, o que Foucault supôs ser o intuito expresso do hegelianismo ou mais geralmente das ciências humanas. Hegel produz uma epistemologia, o que deve ser formalmente independente da ciência experimental.
           Assim, se escalonam: inicialmente uma mecânica que estudaria as relações de massas inertes para  compreender a progressão das formas, desde a simples exterioridade das partes que constituem o espaço abstrato, até as massas planetárias dotadas de movimento imanente e regulado pelas leis de Kepler.
           Após viria a física dos corpos materiais como estudo dos corpos qualificados, mostrando o crescimento das formas paralelas até o todo que as compreende numa universalidade. Essa física abrange o momento inicial do Selbst abstrato da matéria, que é a luz. O que se lhe opõem são os corpos singulares, que se hierarquizam e encontram o Selbst comum no planeta que, por sua vez, escalona a luz pelos processos meteorológicos.
            A luta dos corpos singulares por sua autonomia envolve a tentativa de independência do peso universal pelo seu peso específico e sua coesão, a que se opõe o calor como força tendendo à fluidez, até que os corpos realizam pela forma (Gestalt) a concreção da própria atividade, como nos cristais, e onde ocorre as relações de atração e repulsão magnéticas. Finalmente as forças químicas restauram a inserção do singular no universal, os corpos formados permanecendo como puros conceitos nesse universo totalizante das relações químicas
         A progressão conduz ao estudo da física orgânica, que compreende a geologia como morfologia do organismo terrestre, tema bastante comum da Naturphilosophie – terra, organismo universal, mãe dos seres que abriga. Mas esse estudo abarca também os reinos vegetal e animal. O modo como Hegel compreende a planta é sintomático das limitações de seu método dialético, pois ele pensa cada parte como a suprassunção de alguma parte “anterior”: a árvore seria refutação da semente, assim como os frutos refutam tudo o que precedeu. Não se compreenderia nada dos vegetais, como o biólogo atual poderia atestar, desse modo, já que só pela comunicação atual entre as partes temos a consistência do ser.
        No entanto, no hegelianismo, a dispersão da planta serve como justificativa de sua conceituação como algo oposto ou antecedente à singularidade do animal com suas partes unidas, forma que subsume seus elementos em sistemas: nervoso, sangüíneo, digestivo, correspondendo às funções de sensibilidade, irritabilidade e nutrição.
         Essa hierarquia de formas é algo não tão bizarro no hegelianismo, pois como acentua Bréhier, trata-se de um traço característico do pensamento científico dessa época, tanto quanto a importância atribuída às descobertas experimentais.
         Com o animal surge a individualidade, mas também o ser humano, com o que essa “mitologia da ciência”, conforme a expressão de Bréhier, completa a sua vertente natural e se assegura a transição da Naturphilosophie à Filosofia do Espírito.
         Aqui o ritmo ternário permite classificar os ramos de produção da cultura, abrangendo os estudos sobre o humano. Creio ser importante essa inversão, pois atualmente é o estudo do humano que abrange a produção da cultura. Assim, no sistema de Hegel, todos os desenvolvimentos epistêmicos são alocáveis na tríade que compõe o espírito no seu percurso do mais exterior ao mais interior: filosofia do Espírito subjetivo, onde o estudo dos fatos psicológicos abrange sua forma universal inicial, mais abstata. A filosofia do Espírito objetivo já trata das obras que lhe são consideradas seus produtos efetivos, a história, o direito e os costumes. Mas no seu mais alto grau, ele se recolhe e se reencontra como Espírito absoluto, em que se mostram as produções da arte, da religião e da filosofia.
          Nessa classificação intrinsecamente conceituada, o mais oportuno do ponto de vista epistemológico é apreender a inteligibilidade nas transições, pois isso tem a ver com a ambigüidade histórica do hegelianismo. Ao mesmo tempo que impede que do livre curso da ciência como ela virá a ser na autonomia e interligação imanente de seus problemas, se determine um  pensamento da ciência sem conceito, Hegel permite setorizar esses saberes, o que sem dúvida é algo novo, ainda que se colocando em comunidade com os projetos da época.
           Ora, desde a perspectiva iluminista, como ainda extensa ao projeto epistêmico de um Ampére, a articulação que integra e ao mesmo tempo autonomiza os saberes se desenvolve numa base naturalista. Há preminência do modelo das ciências da natureza e é por seu êxito organizacional e formal que se pensa poder “arrumar” a área antes confusa do “espírito”.
          Hegel inverte essa aproximação, pois o estudo da natureza só se compreende por ter se iluminado em seu fato de ser pela compenetração especulativa que veio do Espírito. É nessa área das Geistewissenchaften que o saber se torna conhecimento, ou, na terminologia do hegelianismo, que o conhecimento se torna Saber. Conforme o projeto que estabelecemos em termos de partições do estudo de Hegel, podemos reservar a exposição desses setores separadamente, pelo que a importância dessa inversão se tornará mais evidente.

                                                                                            
                   
                                                                                             ----------------

               
               3 -   Sociedade


                                                                                 
                                                                  Mas ele considerou a nossa vida como um jogo
                                                                                       e a existência uma feira de negócios
                                                                                                                               Sb 15 – 12
 

                Há variadas leituras de Hegel, que não só permanecem contraditórias, como as de Chatelet e Bréhier, como ainda apontam para uma constante: ou se ama Hegel e se procura aplainar o que seu pensamento pudesse ter de desconcertante frente à atualidade crítica, ou, inversamente, se conserva a tônica no aspecto conservador mostrando que ele suscita apenas a irritação ou a perplexidade.
              Na verdade, essa polêmica tem pertencido historicamente a Hegel. Carpeaux acentuou esse fato, mostrando que a influência de sua filosofia no século XIX se perpetuou no século XX, em três vias: aquela do hegelianismo histórico que deságua na formação das ciências humanas compreensivas; a do absolutista que foi adequada ao nazi-fascismo; e o hegelianismo de esquerda que influencia e se perpetua no marxismo, pois não se deve esquecer que Lenin mesmo incitava a todos a leitura da Ciência da Lógica, como também sublinhou Chatelet.
            Essas partições, contudo, não devem nos impressionar, já que os totalitarismos nazi-fascistas do século XX se utilizaram propagandisticamente do passado da cultura, na forma dos seus "cromos" eminentes estereotipados ao modo de uma exemplaridade moral, na Alemanha isso tendo sido feito principalmente com os românticos e com a figura de Nietzsche. Além disso, é preciso acentuar o aspecto esquemático das três linhas de Carpeaux, uma vez que o influxo do pensamento histórico de Hegel não se limita de modo algum ao cenário da sociologia compreensiva.
            Na verdade, a partição entre pensamento de esquerda e problematização histórica é o que tem se mostrado mais questionável. Breton ironizava os que acusavam Hegel de fascismo - se fosse Hegel a sê-lo, daria vivas ao fascista Hegel, com isso obviamente denegando que Hegel pudesse ser entendido como um fascista. Breton considerava Marx como um "resíduo" do desdobramento do hegelianismo de esquerda, e conceituava a história em Marx, em Hegel e em si mesmo, como "a relação dos esforços da liberdade para nascer e progredir lucidamente". Contrastava essa visão "panorâmica", que "abrange tudo o que podemos abarcar do desenvolvimento das sociedades" àquela "parcelar", a "dos acontecimentos que se desenrolam no quadro da nossa vida".
             "Contradição dramática" da história, segundo Breton, entre essas duas visões, a do seu valor "absoluto e extremo" e a de sua mera contingência  no rol dos acontecimentos contrários à realização da liberdade. Com isso demonstrava que se na visão parcelar os acontecimentos parecem comprometer a fé no êxito futuro da liberdade, e uma vez que até mesmo era já o caso da guerra fria onde "pela primeira vez no decurso de séculos" a própria espécie se achava ameaçada, a liberdade continuava a ser aquilo "por que mais ávidos, mais ansiosos continuamos".
             Breton acentuava que na decorrência da época, era a consideração de Hegel a propósito da importância dos "homens práticos e políticos" capazes de influenciar o curso da história, o que estava se mostrando mais notável, e assim a focalização destacada que Hegel concede às lutas dessas pessoas singulares.
          Aqui localizamos o motivo da crítica de Schelling a Hegel - não eram homens de ação, como ele apontou ter sido estipulado por Hegel, mas o gênio e a aristocracia, ao que parece aristocracia do espírito, mas isso fica ambíguo no texto de Schelling,  o que deveria a seu ver se colocar como o determinante no curso dos acontecimentos históricos.
            A trajetória da sociedade industrial desde a época dessa controvérsia, em princípios do século XIX, tornou cada vez menos pertinente a razão dessa polêmica que ainda era a de Nietzsche contra a secularização da história, o modo pelo qual ela vem tornando-se infensa à erudição dos relatos que só concediam sentido aos fatos nobilitantes. Os caminhos da história econômica, por exemplo, já no século XX se tornam aqueles da reconstituição de relações sociais num certo entorno de época, é a leitura das pequenas transações de negócios entre pessoas comuns registradas cotidianamente por longos períodos nos documentos comezinhos dos escrivães de chancelarias e instituições eclesiásticas. A história ecoômica deixa de ser apenas o relato das formas pelas quais uma classe dominante expressa a sua preponderância como no marxismo ortodoxo. Hegel estava, a meu ver sem dúvida, compreendendo a história nessa acepção social, não erudita.
           Breton considerava que o lugar da ação individual na história, destacado por Hegel, não devia por outro lado induzir no presente a que a disposição de poderes cada vez maiores por alguns fosse vista como chegando a suplantar a interpretação da história que vimos também ser a de Hegel, como tendo um curso autônomo, o da liberdade. Isso é importante notar, pois desde a redação desse texto por Breton, no início dos sixties, o pensamento de esquerda enveredou pelo singular a ponto de que se por um lado cada vez menos havia o registro da palavra "liberdade", também as lutas setorizadas foram se distanciando da noção de serem "históricas".
          Entre os anos setenta e oitenta, numa perspectiva totalmente inversa à que ainda encontra-se em Breton, consolidou-se uma versão de que o Estado era o fascismo e de Hegel como o seu arauto mais proeminente, até o divórcio definitivo de história e devir como no discurso deleuziano. Eis a ironia, pois o cenário internacional desde essa epoca até agora, só fez demonstrar-se cada vez menos uma evolução de sociedades independentes onde os comportamentos se tornam uma questão de direito privado paralelamente a negócios que se potencializam independentemente de qualquer atribuição governamental.
          A globalização, em vez de ser o limite da história, comprova inversamente que estariam certos os que pudessem objetar à noção de devir divorciado da história, que essa seria uma liberdade não somente ilusória, mas de uma ilusão tal que se mostrasse o próprio meio da dominação cultural da atualidade, que se faz pelo estereótipo midiático das diferenças - mas como poderiam elas não serem estereotipáveis, se o seu limite é esse privado-individualista onde o que existe concretamente é a corrência prática do capital midiatizado?
        Não é certamente o Estado enquanto o lugar preenchido pela ideia de liberdade de uma população cultural e politicamente singular, mas o Poder de uma tecnocracia mundial o que agora se sobrepõe aos menores detalhes do cotidiano sobredeterminado assim pelo mercado que não funciona localmente na ausência da colaboração dos governos centrais, entre todos o dos Eua.
       O que os acontecimentos vem demonstrando desde então, é que não há liberdade fora da história, e que não há história que não seja política. Esse termo tão abrangente, "política", encontra no movimento da liberdade o seu critério de sentido.
         A meu ver, esse é o cerne do pensamento histórico de Hegel, e o limite de toda história erudita. A liberdade não é um ideal sem ser ao mesmo tempo o que se concretiza na ação dos seres humanos singulares, com tudo de não "ideativo" que aí se envolve, mas se os seres humanos só são pensáveis na inter-subjetividade, um nível desse movimento que é irredutível ao individual torna-se imanente à sua ação como o que a problematiza num entorno sócio-histórico preciso.
        Não há assim uma ideia abstrata universal de liberdade, mas a pluralidade dos movimentos libertários e das concepções que os orientam, não obstante essa pluralidade estar designando a constante do curso histórico enquanto político, luta pela liberdade. O presente da sociedade industrial implica então pensar a decorrência em que a luta atinge um nível não localizado e planetário. Não poderia haver aquela concepção universal, por outro lado, posto que ninguém pode saltar por cima do seu próprio tempo ou de si mesmo na localização em que é pensante.
              Entre a ação concreta singular e a inter-subjetividade histórica, está a necessidade de pensar a alteridade,  não como um tornar-se a outra coisa, reduzindo-a assim inevitavelmente ao ser que se é, tornando todo o cenário conceitual às questões metafísicas da essência como individuação como ocorreu a Deleuze. Mas sim pensar a alteridade como os outros seres humanos entre os quais nos posicionamos em termos políticos num espaço de projeção das ações possíveis. Assim, a cada vez que uma concepção de liberdade conexa ao movimento ativo que lhe corresponde se efetiva, temos a ação histórica, pois não se pode ter abstratamente a liberdade e o seu conceito, ou seja, não se pode de antemão ter predeterminada a História.  
              Atualmente, o pensamento romântico está sendo objeto de releitura, em razão de renovações que nas ciências humanas atinge muitos ramos, mas também pela exaustão das dicotomias maniqueístas do pós-estruturalismo que até aqui só havia tido por oponente os também já exauridos paradigmas da universalidade abstrata do discurso devido a um estereótipo tradicionalista da "comunidade". Nessa conjuntura uma controvérsia que tem se mostrado persistente é a que atinge as relações Hegel-Nietzsche, o que poderia sinalizar para um novo sentido da recepção de Hegel.
               Deleuze sustentou amplamente a irredutibilidade entre esses pensadores, utilizando Hegel como contraponto à grande identidade Nietzsche-Spinoza, tema central ao pensamento deleuziano. No cenário do pós-modernismo, nomes que se destacaram como representativos de uma geração posterior ao “pensamento-68” onde genericamente se tem situado Deleuze,  põem em cheque justamente essa utilização, afirmando, inversamente, que seria preciso tematizar as proximidades temáticas entre Hegel e Nietzsche.
           A tematização da controvérsia se registra no texto de Robert Williams, “Hegel e Nietzsche: reconhecimento e relação senhor/escravo”. Como o tema sublinha o problema dessa relação, ele se torna particularmente interessante para introduzir o pensamento social de Hegel, naquilo em que nessa temática, a relação senhor/escravo se desdobra na transposição ou superação de um tipo de filosofia da identidade.
         Compreendemos esse aporte ao reter o conceito de indivíduo nas extremidades da tríade que abrange a família, a sociedade e o Estado. Como o que está no meio se mostra assim topicamente entretecido ao sujeito, deve haver algum meio pelo qual este não mais deve ser reduzido numa pura igualdade consigo mesmo, meio de ultrapassamento do solipsismo que parece inerente à própria definição do sujeito por sua identificação a si. Essa tríade demarca a síntese profunda tanto do devir do espírito quanto da filosofia do hegelianismo, e se enuncia como o ritmo ternário concernente à sua teoria social.
         A apresentação de Robert Williams, envolvendo a polêmica pós-moderna com Deleuze, parece inicialmente favorável aos críticos da oposição como Walter Kaufmann, Daniel Breazeale, Judith Butler, Robert Solomon, Stephen Houlgate, Eliot Jurist, Philip Klain, Richard Rorty, Stanley Rosen e White. Williams não especifica o contexto de pronunciamento desses pensadores, esclarecendo apenas que Kauffman considera uma incompreensão tanto de Hegel quanto de Nietzsche supor uma “justaposição precisa” entre eles, sublinhando ainda que nem todos os autores citados concordam quanto a essa afirmação.
            Ele inclui alusões aos estudos de Houlgate e Jurist, respectivamente sobre a crítica da metafísica e as teorias da ação e da cultura, como paralelos entre Hegel e Nietzche. Em seguida, Williams propõe o exame do problema do reconhecimento nesses dois pensadores, o que ao longo do texto se mostra como uma crítica ácida tanto de Nietzsche quanto de Deleuze, para salvaguardar a superioridade de Hegel quanto a todo esse tópico que o leitor descobre como algo mais abrangente, pois se estende como fundamento da teoria social que implica tanto o sentido existencial do sujeito na sua destinação ao Outro quanto o problema da dominação.
             Como  parece ter sido Karl Joel a introduzir, as relações Nietzche -Hegel estão longe de ter sido adequadamente compreendidas.  Mas Williams se inclina na verdade por uma impossibilidade de reduzir essas relações a um paralelo aproximativo, já que conduz a uma decisiva irredutibilidade de Hegel ao que seria o solipsismo egoístico de Nietzsche. A veemência dessa controvérsia se torna compreensível se lembrarmos o estudo de Michael Hardt sobre Deleuze, onde se assevera que por seu nietzschianismo Deleuze teria se pensado a si mesmo como o inimigo número do hegelianismo, essa inimizade sendo a tônica de todo o seu comprometimento filosófico.
        Parece ser a releitura do Romantismo na pós-modernidade que está interferindo com o que havia sido a sua redução nietzschiana no pós-estruturalismo. Assim, Bataille atribuiu sua teoria do erotismo à sua leitura de Hegel, mas quando Derrida a subscreve, intenta desfazer o que teria sido o erro de Bataile a propósito de suas motivações expressamente anti-nietzschianas, para assinalar o que seria comum entre Bataile e Nietzsche, tudo suportado por uma versão do Romantismo que a meu ver hoje já não se poderia praticar, não obstante isso não prejudicar totalmente a contribuição de Derrida à teoria da linguagem. Aqui, portanto, insiro o hegelianismo num conjunto de questões próprias ao Romantismo, o que não elide por outro lado o que assinalei como a questão de sua singularidade no tratamento dessas questões.
      A meu ver, Nietzche prologa, em relação a Hegel, uma objeção que já havia sido a de Schelling pelo que a história ambos queriam ser o espaço cavalheiresco da atuação do gênio. O que se torna importante observar é então que em relação à teoria social, Hegel completa um movimento que parece iniciar-se entre Rousseau e Kant, aquele em que se implementa a superação da teoria política moderna, por onde se generalizava do comportamento adaptativo individual a significação e atribuição do fato social. Assim, desde Rousseau trata-se de conceituar uma forma do social, mas somente em Hegel o movimento completa-se com a própria recusa das teorias do "contrato social".
          Mas não se pode também admitir que Hegel foi indiferente à questão da participação da subjetividade em relação à história, pelo viés justamente do social. Apreender o ponto de equilíbrio que parece ter sido o escopo hegeliano, me parece facilitado se notarmos que ele está sendo posicionado desde a transposição da teoria social ao elemento da universalidade no entanto entendendo-se historicamente, em todo caso não mais pelo ponto de vista da generalização a partir do empírico. 
          O interessante seria mostrar como ele se desencumbe dessa tarefa de pensar a sociedade, de modo não idêntico a Kant, pelo que ele transpôs realmente toda a ambiência moderna da teoria política.  O problema, como Bréhier notou, se torna o foco da modernidade, naquilo em que se pode constatar a irredutibilidade do momento pós-medieval a tudo o que vinha se apresentando anteriormente. Brehier o enuncia como sendo o problema do individualismo, derivado desse sentimento desconfortável da espessura de sociedade e mundo frente à realidade subjetiva.
          O exterior pôde se mostrar não mais como a realidade natural do sujeito, mas como constrangimento da expansão das suas faculdades e iniciativas. Surge assim a tarefa da filosofia política moderna, conceder ao sujeito o nexo de sua inserção social por uma adequada definição do que forma a sociedade.
           A palavra importante torna-se racionalidade. A proposta de definir o nexo em termos de razão vai se afirmando cada vez mais sobre as teorias da força, à Maquiavel. Locke define a demarcação pós-renascentista ao estabelecer o fundamento liberal do Contrato na imagem do sujeito individual, suas necessidades originárias, como base sobre que, generalizando,  racionalmente se deriva a construção das instituições.
            Ora, no Iluminismo essa base individual se torna problematizada no que pretendeu oferecer uma base neutra de generalização possível, como se o indivíduo pudesse ser pensado como átomo social. O sujeito volta a ser dado como desejo, egoísmo, ambição, paixão. Mas a sociedade em vias de se tornar capitalista é exatamente a moldura satisfatória desse sujeito ávido. Racionalização aqui supõe um cálculo apto a capitalizar as vertentes do desejo, leis e instituições que derivam como meio termo de forças opostas, forças não racionais em si mesmas, mas tendo o objeto do seu querer claramente recuperável pela observação. A moral, o Estado, o comércio, as leis, são modos de combinar os interesses egoístas. Isso ainda permite que se o faça com lucro, isto é, com progresso ao longo do tempo, traduzindo-se nas invenções que acomodam ainda mais a existência e as instituições. O que faculta o trânsito do desejo à combinação institucional é a necessidade, o que permite ao próprio sujeito compreender a limitação do seu desejo no interesse da sobrevivência.
           É interessante observar que Kant, revertendo essa base individual para ancorar a teoria social e política numa base geral, de certo modo prolonga o pensamento iluminista. A base geral é a universalidade da lei. Mas a “lei” nessa formulação é um termo vazio, uma pura forma. Vimos que o preenchimento dessa forma suporta a teoria da história no kantismo, e aqui se aloja a vicissitude, a imprevisibilidade e o capricho que derivam da insaciável cobiça humana, o mal radical. A lei ou instituição, de fato, se torna esse cálculo “iluminista” na sua efetividade histórica, onde ocorre a anulação do mal pela generalização da situação individual.
              Hegel comparte com Kant a base universal da lei. Mas não como uma forma vazia, e é nisso que reverte fundamentalmente o iluminismo. A racionalidade nem é a pura universalidade, nem o cálculo derivado das premissas desejo ilimitado mais necessidade de sobrevivência. Racionalidade significa ser uma produção ou uma manifestação do espírito na objetividade histórica, isto é, na factualidade da vigência. Não há racionalidade pura, mas somente a que se expressa nas formas da legalidade historicamente constituídas. Ora, essas formas não se põem na continuidade da natureza insaciável do homem, mas como liberdade frente a essa natureza.
             As formas institucionais têm um caráter intrínseco e necessário e é nessa perspectiva que devem ser estudadas, não na base de sua relação com algo que lhes é precisamente oposto, a natureza, necessidades ou desejos. Portanto, uma vez na região do espírito objetivo, atravessou-se o limiar da necessidade, já se está na esfera da liberdade.
           A liberdade é negação da individualidade naquilo pelo que esta se prende à natureza da necessidade e do desejo. Ao mesmo tempo, liberdade é a priorística, como uma determinação do espírito, sua objetividade no mundo da cultura. Hegel preserva a idéia de progresso, contudo, comum ao iluminismo e a Kant. A liberdade se realiza progressivamente na instituição, e é por isso que o estudo resulta transformado. Examinam-se as formas entre elas mesmas, na sua autonomia, para descobrir o nexo de sua progressividade, não mais se as examina para detectar a imanência do desejo ou da contraposição egoística localizada de que seriam derivadas.
           Algo nesse exame repõe a estética, o estudo das formas artísticas na sua autonomia, algo que está surgindo precisamente nesse momento e se relaciona polemicamente com a démarche filosófica de Hegel. Bréhier destaca o caráter artificial de se propor o estudo da natureza sobre o fundo da atitude espiritual ou realização do conceito, como vimos ser o caso no núcleo reservado à epistemologia. Agora, poderíamos estabelecer uma analogia com o estudo político-social de Hegel, pois as formas são visadas na sua concretude de texto, por assim expressar. As instituições de várias procedências históricas são “lidas” como textos destacados do seu contexto social, para se tornar fragmentos de um outro contexto, aquele formado pelo devir do espírito “racionalmente” recuperado pela filosofia especulativa.
            Enquanto a abordagem estética tende a se tornar tanto mais aproveitável quanto mais se libera a autonomia do produto artístico, o estudo das instituições parece bastante comprometido nessa via. Quando a sociologia contemporânea se propõe o problema da escolha pessoal confrontada à coerção social, ele se destina a compreender o ato dos agentes na sua inserção social para responder a questões como se existe uma liberdade subjetiva nas escolhas ou se tudo o que os agentes podem fazer deriva de padrões e regras estabelecidos pela sociedade. O estudo de instituições é algo reportável intrinsecamente aos agentes e aos grupos que eles integram. Hegel está propondo algo bem oposto, uma estória do encadeamento de instituições no tempo e no espaço de modo a conduzir à sua atualidade ocidental, ao tipo de sociedade constitucional e protestante que ele se encarregou de justificar como o objetivo final do espírito ético. Mas como poderemos observar, de fato o resultado dessa proposta é polêmico na apreensão dos leitores de Hegel. Não se pode por isso, sem mais, reduzir Hegel ao evolucionismo social típico do positivismo, bastante assinalável em Marx.
            As instituições que liberam o ser humano de sua natureza ou necessidade imediata são o direito e a moral, inicialmente, conforme a doutrina de Hegel. Essas instituições são definidas a priori como irredutíveis à natureza e ao indivíduo no seu vínculo natural a si. A entrada na cultura se faz, portanto, pela negação da individualidade na forma que poderia ser entendida como átomo social.
        A teoria do “espírito objetivo” compreende os três momentos do direito, costumes e moralidade, conforme Bréhier, que o enuncia em meio à enumeração das 27 tríades do hegelianismo. No entanto, bem mais à frente, ao tratar exclusivamente esse tema, Bréhier só considera ostensivamente a transição do direito à moralidade. Quanto a Chatelet, o trecho relativo ao exame dessa tríada estabelece a moralidade como momento seguinte àquele do direito, sendo que identifica o Absoluto “alhures”, na coletividade que age, na família, na sociedade e no Estado.
         Ora, essa tríade do Absoluto pertence à moralidade, de modo que o  costume deve se  inserir no momento de intermediação. Parece, no entanto, que a verdadeira oposição está entre exterioridade abstrata e exterioridade concreta, sendo essa concretude assegurada pela via da interioridade. Assim, o exame tende a polarizar o direito e a moralidade.
     O direito para Hegel é tão somente a garantia da propriedade. A individualidade natural que foi negada se torna a subjetividade civil desde que implementa e é implementada, garante e é garantida, pelo direito como reconhecimento do vínculo inalienável entre o proprietário e o seu objeto. Ser proprietário é sinônimo de ser sujeito civil. Não pela objetividade material da coisa, como a sua posse, seu desfrute, mas por que a propriedade é uma operação de sentido pela qual o ser humano dota a coisa da consistência de ser sua propriedade - até aqui o movimento conceitual é o mesmo de Locke. O pronome possessivo garante formalmente a relação ao pronome pessoal. “Seu”, “dele”, são apenas relativos a “ele”, como “Meu”, é relativo ao “Eu”. A coisa se torna minha se nela insiro a minha vontade, que Locke traduziu em termos de trabalho.
           Já conforme Hegel, a ênfase desde a propriedade se torna a troca social, que se torna possível como uma combinação de vontades pelo qual um retira a sua vontade da coisa que lhe pertencia, e que se torna do outro, desde que esse outro retire a sua vontade de alguma outra coisa que lhe pertencia e que se torna daquele com quem negociou a troca. O contrato de troca se torna a base das relações jurídicas, pois ele supõe o valor, suportando conceitualmente o direito civil e o penal.
          O terceiro é aquele que julga quando várias pessoas se arrogam o direito sobre algum bem. O direito não depende do Estado, concernindo apenas ao âmbito privado. Mas também o Estado, a cidade, é independente do direito, o que se torna uma originalidade do pensamento hegeliano. Até aqui se pensava o Estado como um caso particular do direito, uma aplicação geral da regulação das leis. Entre o direito e a sociedade, em Hegel, existe a moralidade.
           Hegel pensa o direito como um início, portanto uma abstração, na vida do espírito. É pelo estabelecimento do direito que se define a má ação, o desconhecimento da propriedade. O ciclo de má ação e vingança seria interminável se não se introduzisse o juiz desinteressado, aquele que restabelece a propriedade. Mas o que se restabelece assim é a liberdade, que no âmbito exclusivo do direito se garante pela independência do sujeito frente à necessidade da natureza, sua afirmação como sujeito espiritual, sujeito de cultura. Ora, no direito, na propriedade, o que a posse da coisa estabelece é a interioridade do sujeito que se tornou livre da materialidade que continua a ser da coisa. O despertar dessa consciência da interioridade independente da coisa, ainda que tenha sido estabelecida pela relação de posse da coisa, se torna a moralidade, independente do direito.
            O direito é abstrato porque exterior, a moralidade é a adesão da vontade, interior, independente da autoridade. O direito se situa na região da obediência, a moralidade se situa na região da intenção. Mas esse lugar da interioridade pura é também onde se processa a dialética de indivíduo e sociedade. Pois ao sujeito parece que a instituição moral deveria ser como a realização da sua adesão, portanto criação sua, a ele devida. É o problema do mal, conforme se desenvolve na doutrina de Kant. Hegel recusa resolvê-lo pelo viés kantiano do progresso gradual. O mal significa apenas que o sujeito retroagiu ao indivíduo natural, julgando erroneamente o Universal da vontade moral como se este fosse expressão da vontade particular.
               Ora, é no grupo social efetivo que o Universal concretamente se verifica na sua existência histórica, não na idealização particular do indivíduo. O sujeito que adere à lei moral, mas se choca com o obstáculo de seu próprio mal, no sentido de sua tendência particular a desviar para si a moralidade da lei, encontra na sociedade, prontamente, o corretivo de sua perspectiva incorreta. Assim, a moralidade se conduz como Eticidade (Sittlichkeit) que Hegel conceitua como o conjunto das instituições sociais efetivas, historicamente vigentes.
            A Eticidade é, portanto, sinônimo de mundo da cultura ou socialidade dos seres humanos. Ela compreende a família, a sociedade e o Estado como momentos da sua realização enquanto Idéia absoluta. Note-se que desde a transição da moralidade como Eticidade, o retroagir ao indivíduo natural se tornou impossível. O sujeito se afirma na família como a base mais íntima da subjetividade socialmente destinada e socialmente constituída.
            A família realiza a destinação mútua entre os sexos, cujo escopo e maior bem é a educação dos filhos. Hegel desconhece, no sentido de considerar extrínseco à verdadeira realização da moralidade, qualquer ordenação familiar que não seja o casamento monogâmico - até bem tarde na teoria social se considerou a família ocidental como a essência de todas as descrições etnográficas de instituições familiares que no tempo de Hegel eram desconhecidas. Está claro que hoje essa posição é insustentável.. Mas na concepção de Hegel a família é um meio atomizado, grupos fechados de parentesco, portanto, formando apenas a base do grupamento maior que é a sociedade.
           Assim como a propriedade regulada pelo direito não se confunde com o Estado, a sociedade permanece também algo irredutível a ele. Em ambos os casos a irredutibilidade se mede pela utilidade, algo que se poderia considerar imediatez, daquilo que no Estado se realiza como estando nos antípodas do natural, da necessidade, do imediato. A propriedade é sobre a coisa, o direito um laço econômico. A sociedade, uma das grandes originalidades de Hegel, é também um laço econômico, pois se destina a coordenação do trabalho coletivo, organização dos trabalhos setorizados que servem à satisfação das necessidades das famílias.
         Mas esse trabalho ordenador do espírito não parece fácil de se concretizar. Hegel vê as classes surgirem da destinação das atividades no âmbito da comunidade. Mas ele não supõe que por si isso garantiria a justiça imanente, a realização da natureza de cada um conforme aquilo que produz. A justiça negativa que surge dessa necessidade de coordenar as atividades que devem prover o sustento e a segurança de todos, não se totaliza como uma justiça positiva por fim. Permanece sendo um expediente sujeito a todo tipo de desvio, pois a satisfação que deveria prover está relacionada ao material, à natureza, inclusive a “natureza” do ser humano, isto é, o seu mal, a sua tendência ao individual.
           É interessante observar que recentemente uma revista especializada publicou um matéria sobre Hegel, e na capa registrou a manchete: o filósofo que considera natural o homem ser mal. Ora, “homem” natural para Hegel é algo menos humano, algo próximo do animal. Esse é o lote da individualidade. O “homem” real, autêntico, é o sujeito da cultura, não o da natureza. Assim, o que se verifica ser a doutrina do hegelianismo resulta como o oposto do que a manchete sugere como essência do homem. O mal “humano”, conforme Hegel, significa o nada, o não-ser, algo destinado à Suprassunção na cultura, aí onde o ser humano vem a ser o que ele é. Individualidade portanto está oposto à Subjetividade.
            Enquanto o indivíduo é o corpo, o animal natural,  o sujeito é a personalidade da cultura, o espírito como realidade da pessoa social. Não parece haver meio termo no pensamento de Hegel, entre esses dois extremos, o que é insólito. A dialética nese caso se aplica apenas como transição entre um estado e outro estado, não há um estado  intermediário  irredutível a ambos. Aqui parece-me escusado acrescentar que não se trata de uma formalidade terminológica, mas conceitual. Hegel pode usar um ou outro termo, sujeito ou indivíduo, mas sempre, creio, se pode recuperar a oposição entre os dois conceitos que ilustrei utilizando a dualidade desses étimos.
          Vimos anteriormente que no século XVIII se buscou a transição, justamente, a essa identificação de humanidade e cultura. Em Hegel o processo já se consumou. A independência ou autonomia da Lei e do Governo que caracterizam o Estado significa uma completa ruptura com o que restava de natural na atividade social do trabalho ou no atomismo das famílias. Assim, não se pode conceituar o Estado no hegelianismo do mesmo modo que ele vinha sendo visado pelos iluministas. Aqui o Estado é o laço contratual que garante a segurança do indivíduo. No hegelianismo, o Estado é uma realidade em si mesma, a lei e o governo na sua formalidade intrínseca, seu poder ilimitado por outro poder que seria o da natureza ou do indivíduo, mas de fato qualificado na sua formação histórica, o que vai reverter ou ao menos problematizar as deduções imediatistas desse poder como interpretável no fascismo.
            Aqui se torna interessante confrontar essa conceituação de Hegel com Rousseau e Hobbes. Inicialmente, retornando ao estudo de Bernardes acerca da crítica hegeliana à teoria do pacto ou contrato social de Hobbes, o importante é notar a transposição que o pensamento burguês está sofrendo. Isso é tanto mais notável, pois em ambos os pensadores trata-se de formular o que será mais tarde amplamente utilizado como os pródomos do liberalismo, mas dentro de uma concepção que pretende justificar o absolutismo - sendo no entanto ainda essa uma afirmação que se vem tornando controversa a propósito de Hegel.
       
                                                                                                                        --------------------------

          No momento moderno o problema político nasceu numa confluência inextrincável com o problema da liberdade. O modo como Bréhier enunciou o despertar da moderna teoria política, envolvendo-o na antítese recém-experimentada do subjetivo e do social, permite compreender o aporte que impõe a sua formulação nesse momento renascentista. Pois o constrangimento se mostrou como o abuso do poder, quando o poder da instituições deixou de ser ideologicamente justificado nos padrões que vinham até então sendo suficientes para tansformá-lo no mais aceitável e comum a todos.
         O que se verifica porém é que ao longo do momento moderno, da Renascença a Hegel, o encaminhamento desse problema se transformou. Inicialmente tratava-se de saber como proteger os homens do abuso do poder por aqueles que haviam se apropriado de funções sociais pelas quais exerciam o despotismo sobre os outros, isto é, protegê-los do poder governamental, institucional, que se beneficiava de leis injustas ou costumes obsoletos. Mas até o século XIX, na ambiência de Hegel e do utilitarismo inglês, o problema se tornou saber como proteger as pessoas do abuso do poder por parte dos outros, não do Governo. Inversamente, era o governo que aparecia agora como o lugar da neutralidade e da legalidade necessárias à impossibilitação do abuso particular.
           A palavra importante se torna Representação. Assim, por exemplo, no interior da tradição liberal, não é tão paradoxal que o pensador político esteja ao mesmo tempo propondo o absolutismo, mas na base da representação popular, como se o soberano fosse o “representante” do povo. Locke foi o crítico dessa idéia, no entanto mantendo as mesmas premissas pelas quais tratava-se de limitar o poder da autoridade civil. A Representação, até aqui, é o meio pelo qual se pensa a minimização dos atributos, funções ou instituições legais, para fazer do “soberano” - o monarca ou o parlamento – apenas uma tipificação dos sujeitos sociais.
         Mas progressivamente a representação se tornou o meio pelo qual se investia o poder de mais e mais funções a fim de atingir o controle da massa, de modo que o sujeito se tornasse protegido contra o “outro” da sociedade. As teorias do contrato social, de Hobbes a Locke, chegam ao rousseauísmo onde se enuncia a cisão que, no entanto, perfaz a coerência da doutrina. Por um lado, o “Rousseau revolucionário”, conforme a expressão de Bréhier, que fabrica a vontade geral como concerto dos indivíduos, expressando assim a essência do contratualismo. Mas também o “Rouseau estatista”, declarando a soberania inalienável, infalível e incoercível.
          Ora, o que permite manter Rousseau na linha do contrato é que a soberania ideal está enraizada num mecanismo de representação constitucional que não conduz por necessidade intrínseca ao absolutismo. Em todo caso, o que permitiria supor uma coincidência com o pensamento hegeliano seria a universalidade atribuída à função da soberania. Mas, como nota logo depois Bréhier, isto é, depois de aproximar ambos os pensadores por essa via do universal como definição do fenômeno do Estado, a solução de Hegel é bem oposta à de Rousseau. O que se deve ter bem salientado nisso é que Bréhier atribui essa oposição ao fato de que “aqui começa a apologia desse absolutismo governamental que, conforme Hegel, pode encarnar a universalidade do Estado”.
             No entanto, o que se tornou polêmico foi justamente o papel do absolutismo em Hegel. Assim, Thadeu Weber, no artigo “O Estado Ético” é mais prudente, ao iluminar o problema das relações Hegel-Rousseau pela via da crítica estabelecida pelo próprio Hegel. O problema está na consideração da vontade geral como o que há de comum nas vontades individuais, ou, conforme a expressão destacada do “Contrato Social”, o “substrato coletivo das consciências”.
           Esse é o cerne da oposição de Hegel à teoria do contrato. Hegel pensa que a “subsunção do político” à “expressão subjetiva da vontade particular dos indivíduos pressuposta e manifesta no momento próprio deste ato”, conforme Bernardes referindo-se ao ato do Contrato que supostamente estabelece o elo social, é apenas a elevação da figura do direito privado à instância de algo que é bem maior, a existência do Estado. O contrato não parece ser nem mesmo, em Hegel, pensado como um ato fundador, que pode ou não precisa depender de um momento anterior não regulado, “natural”. Mas parece ser conceituado como o tipo de todos os contratos particulares e efetivamente celebrados entre as pessoas na sociedade civil.
          O contrato é um expediente, um modo pelo qual os sujeitos privados se garantem a não violação de sua relação de posse relativa à coisa, ao objeto do contrato. Ora, Hegel pensa que seria um contra-senso estabelecer a soberania como uma renúncia da vontade individual para investir coletivamente a vontade do soberano, ato fundador do Contrato social conforme seus teoristas, por que o fundamento de qualquer contrato é justamente a vontade subjetiva.
          O que se expressa através dessa crítica é uma profunda mudança na teoria da representação política, como bem expressou Agemir Bavaresco no texto “A crise do Estado-nação e a teoria da soberania em Hegel”. Agora a questão não está no saber das condições pelas quais um indivíduo é politicamente habilitado, mas como são constituídas e como se entrearticulam as individualidades política e social, já que se tornou claro que a sociedade e o Estado não podem ser sobrepostos como o mesmo. Ou seja, trata-se agora de pensar o lugar de onde deriva o sujeito da civilidade, não o indivíduo natural como noção básica da doutrina social.
           Os contratos celebrados entre os sujeitos sociais os estabelece como membros de uma sociedade civil, mas nada esclarece, também, quanto à natureza da soberania. Ora, pelo que vimos com Bréhier, poderia parecer que o problema da consecução da teoria em Hegel é de simples tratamento, bastando enunciar que para ele a Soberania se realiza pelo absolutismo já que o príncipe encarna a monarquia constitucional como realização do percurso da Idéia Universal que veio da família e transitou pela sociedade civil até incorporar o Governo como a Liberdade Objetiva.
            Pelo Estado todo o conflito que se mantinha insuperável na sociedade civil, é apaziguado. Isso por que o Estado realiza a Idéia de legitimidade, formalmente, por um lado, mas por outro, na sua materialidade, no conteúdo histórico, local, com que se reveste, ele encarna o “espírito do povo”, o Volksgeist – não o conjunto calculado das vontades individuais, mas a sua existência coletiva enquanto ideal.
           No entanto isso parece longe de ser tão simples. Há dois problemas, no mínimo, aqui. Inicialmente a questão da relação de Hegel com o liberalismo: até que ponto pode ser positivamente proposta? Mas também a questão da legitimidade: qual é o angulo em que se apóia definitivamente a argumentação de Hegel, pela qual o Estado se reveste do absoluto da Eticidade, o príncipe ou a constituição? Finalmente isso conduz a um terceiro núcleo prolemático pelo que trata-se de resolver quanto à destinação dessa doutrina: ela aporta com efeito no Estado germânico-absoluto e lutherano, ou Hegel pensou o seu momento histórico apenas como a efetividade da descoberta ou enunciação da doutrina real do espírito – a sua fenomenologia, ponto do qual deveria começar o verdadeiro progresso humano?

                                                                                                                      -------------------

             Parece que se pode ordenar o conjunto de indagações formuladas conforme certa ambigüidade fundamental do pensamento de Hegel, algo que já examinamos anteriormente. Agora, para definir de modo mais preciso essa oscilação, a sobreposição das observações de Robert Hartman e Lowenberg se mostra adequada.
              Conforme Hartman, na introdução à sua tradução do texto hegeliano “A Razão na História”, há no interior da doutrina uma oposição entre a forma e o conteúdo. Sendo este o material erudito com que Hegel estava lidando na construção textual, o conteúdo apenas limitava o alcance da forma que se enunciava como efetivamente revolucionária.
              Penso que se poderia mostrar que o conteúdo seria o Estado absolutista, ou a moralidade cristã, a forma seria a progressividade dialética e a concretude da experiência como real dado a pensar. Assim, Hartman relaciona a opção do intérprete pelo conteúdo com uma leitura de direita do hegelismo e, inversamente, a opção pela forma como a leitura da esquerda.
              Lowenberg enuncia isso, como já vimos, do seguinte modo: aceitar a validade do método dialético impede que se o extinga pela consecução de um momento absoluto. Aqui a observação nomeia menos uma oscilação do que uma contradição autêntica: o método de Hegel é incoerente com a conclusão do hegelianismo nos termos de um absolutismo pan-germânico cristão.
          Transpondo isso aos problemas mencionados, podemos propor que uma preferência pelo método induz a responder que o pensamento de Hegel é liberal e que o eixo de sua teoria da legitimidade é a constituição. Assim, mesmo o dogmatismo metódico tende a se atenuar, como em Chatelet: a dialética seria algo não tão restrito a um modelo do pensar, mas um programa de comprometimento com a progressividade incoercível do real.
        Já instituir a leitura na base do conteúdo induz a pensar que Hegel esteve nos antípodas do liberalismo e que sua teoria política depende inteiramente do absolutismo. O problema inclui a relação que se estabelece entre liberalismo e individualismo, pois se Hegel inovou justamente ao reverter o papel do indivíduo, como se poderia compreender sua teoria política em termos liberais? Assim, a escolha entre forma e conteúdo, método ou totalização, parece envolver a situação do sujeito no pensamento hegeliano, isto é, parece implicar a questão de definir de que modo o elo social se institui na sua destinação ao humano.
        Podemos confrontar os textos de Bavaresco e Dotti como exemplos do antagonismo dessas leituras do hegelianismo. O estudo sobre a teoria da soberania em Hegel, de Bavaresco, compreende que há duas interpretações quanto a esse fenômeno, ilustradas, por um lado, com Eric Weil e por outro, com Labarrière e Jarczyk.
           Weil pensa que em Hegel a soberania depende do rei como instância decisora, mas que o funcionamento do Estado se apóia sobre os funcionários e sobre a constituição, que seriam os verdadeiros responsáveis por sua efetividade ou vigência. Quanto a Labarrière e Jarczyk, a relativização do absolutismo hegeliano limita o papel principal da teoria à constituição.
          Nessa interpretação constitucionalista, a Carta legal sintetiza o equilíbrio, a articulação dos momentos constituídos pela particularidade do governo, a universalidade do Estado enquanto totalização da sociedade, e a singularidade da pessoa do príncipe.
            Em todo caso, o ponto importante da teoria de Hegel é que o Estado moderno é expressão da legalidade, portanto, deve ser o oposto do despotismo, conforme o texto de Bavaresco. Mas assim a enunciação permanece prévia à decisão sobre como se efetiva essa legalidade. Ela é a idealidade das esferas e atividades particulares, mas enquanto isso permanece na dependência de um momento singular como voz da decisão, a pessoa do rei, fica a questão pela qual o singular não pode ser confundido com os particulares, mas ele tampouco deixa de se manter numa relação especulativo-representativa com o subjetivo.
            Penso que o liberalismo aqui está implícito na via mesma pela qual esse momento singular impede as efetivações democrática ou socialista, isto é, como a Eticidade está implementada num momento histórico liberal, por "democrático" Hegel entendia algo bem oposto ao que nos é costumeiro, a saber, uma efetivação social não de todo representativa seja por rusticidade de instituições, o que enfatiza o papel da constituição e dos funcionários do governo, seja pelo viés extrínseco da relação entre instituição estatal e subjetividade. O singular da pessoa do rei conserva idealmente a hsitoricidade desse novo estatuto da legalidade, que tem por termo o sujeito na sua irredutibilidade ao indivíduo. Essa concepção era comum nessa época que não pugnou, em termos do almejado liberalismo, senão pela solução constitucional, pois o conceito contemporâneo de democracia não havia ainda emergido como ocorre na viragem ao século XX. 
          Chatelet apoiou sua exposição da teoria do Estado de Hegel inteiramente sobre a concepção de seu vínculo com o liberalismo. Assim ele é bem explícito quanto ao enraizamento desse pensamento da idealidade do Estado numa certa concepção prática da razão, isto é, numa dependência ao estatuto moral do sujeito, o que poderia parecer paradoxal.
            Mas o paradoxo seria apenas aparente, se for mantida a cisão conceitual já esclarecida entre o sujeito e o indivíduo. Pois é a atividade social mesmo que funda a subjetividade que pode, somente então, ser localizada na base da legitimidade da Soberania. Creio que se poderia ilustrar o sentido da interpretação de Chatelet utilizando a imgem pela qual o liberalismo se deslocou de uma reta a um círculo. A linha reta iluminista que conduz do particular ao geral se torna o círculo hegeliano que prevê a generalidade do particular e este, então, apto a conduzir novamente ao geral. Mas em um caso o geral é a soma do particular, no outro ele é a idealidade do universal. Chatelet parece supor que o que permitiu a Hegel operar a transformação foi a razão prática de Kant, bastando “estabelecê-la” na prática social.
            A interpretação de Dotti parece irredutível a essa versão kantiana. Ele pensa o Estado de Hegel como uma configuração teológico-política. O universal aqui não seria apenas a abstração do entendimento, mas uma “forma” ou “vontade efetivamente estruturante da realidade”. Nessa perspectiva há uma expressa antítese de Hegel ao “racionalismo liberal”. Quanto a isso, Dotti está ao mesmo tempo se situando frente à opção entre método e totalização, pois ele mostra que propor a leitura da teoria do Estado de Hegel como uma teologia política significa aceitar que a teoria está apoiada sobre algo mais profundo que a reflexão contraditória, a dialética.
             Se isso for assim, no entender de Dotti, então se podem considerar legítimos os índices da irredutibilidade de Marx e Stirner a Hegel, mesmo sabendo que os três lidam com a dialética que foi Hegel a enunciar como via filosófica. A questão é como demonstrar que no hegelianismo há mesmo esse algo a mais que o torna impossível de se manter no mesmo nível imanente desses seus críticos.
       O argumento principal de Dotti é a comparação que Hegel introduziu entre a prova ontológica da existência de Deus e a justificação do poder soberano. Assim como a idéia de Deus se auto-comprova pelo simples fato de existir em nós, a idéia da soberania não possui outra origem que não ela mesma. Assim ela se auto-justifica na absolutez da vontade decisória suprema no topo do Estado.
        Creio que se poderia interpretar o encaminhamento teórico de Dotti supondo a idealidade da soberania absolutista como o transcendental da legitimidade estatal. A representação corporifica aquilo que já está dado, pela existência social, como legitimidade desse elo. Ao mesmo tempo o elo só funciona como fator coesivo porque encarna a representação na forma da soberania ou legitimidade. O Estado é o aparato da razão prática, mas isso por que o soberano, o rei ou príncipe, encarna a idéia da decisão suprema. O que ele representa é assim inteiramente oposto a um conjunto de vontades particulares, sendo, sim, a Ordem da vontade racional socialmente (universalmente) constituída.
           É curioso observar como essa origem decisionista do Estado, que situa a teoria como antitética da “neutralização liberal-normativista do político”, conforme a expressão de Dotti, permite utilizar a aproximação Hegel-Kant de modo inverso ao de Chatelet.
            Creio que o ponto decisivo está na compreensão do Sollen hegeliano, o que sem dúvida situa seu pensamento numa relação com Kant, mas não de subsunção. Ora, é o modo como se conceitua o dever, estabelecendo a transição do indivíduo ao sujeito, que deverá esclarecer quanto à perspectiva que Hegel está implementando na abrangência do elo social. Quanto a isso, o texto importante é A Razão na História.
           Aqui se pode constatar do modo mais patente a recusa do pensamento moral pelo viés antigo, pois, como notou Bréhier, assim como em Kant há o écart entre a ação particular e a universalidade do bem, a harmonia sendo apenas acidental,  instaura-se o problema novo das relações felicidade-virtude. É nesse ponto que se mostra o irredutível do momento da filosofia de Hegel.
          Bréhier sublinha isso mostrando que a moralidade está por Hegel sndo colocada como uma abstração frente à realidade do grupo social que concretiza a cultura. O dever ser permanece vazio na exterioridade das formas históricas da família, do direito e do Estado. Já no texto A Razão na História, onde se trata para Hegel de precisar a inserção de sujeito e cultura, nos textos consecutivos sobre o indivíduo como sujeito e como objeto da história há uma interessante progressão que repõe a ação no centro da história, da cultura e do vir a ser, logo, do Real. Assim, descreve-se o salto do indivíduo ao sujeito no âmbito da sua participação na cultura, mas isso do seu próprio ponto de vista, para depois considerar o feito do sujeito como narrado na história.
            Aqui não deixa de se apresentar uma teroria da moralidade, ou melhor, uma referência ao que habitualmente se estuda no interior desse tópico, mas de modo que os itens correlatos se tornam deslocados. Trata-se inicialmente de considerar a oposição paixão-lei, individual-universal, para em seguida colocar a questão da oposição felicidade-virtude. No primeiro caso, o meio termo está na idéia, precisamente a idéia de liberdade cuja exteriorização ou efetivação é a história. No segundo, há uma caracterização do dever que, curiosamente, parece estar aquém da objetividade da idéia encarnada no feito dos personagens históricos, os “heróis”.
           A história do mundo é a progressão da realização da liberdade, e isso permite classificar os graus que hsitoricamente se apresentaram nesse percurso: o Oriente, a Grécia e o Estado moderno mostram o caminho da liberdade se estendendo, respectivamente, de um, a alguns e, finalmente, a todos.
            Isso subentende que Hegel pensou a perfeição política, seu elogio do príncipe, como uma realização da liberdade, não como a tipificação do dever na forma da autoridade suprema. É assim que Hegel marca o contraste mais acentuado entre o Oriente e o Estado moderno: só no Oriente se localiza a figura do déspota, o único livre. Mas em todos os estágios da história o que progride é a consciência da idéia de liberdade.
              Aqui o pensamento de Hegel é algo complexo. A idéia de liberdade surge como a essência do espírito, enquanto a essência da matéria é a gravidade. A liberdade é a atribuição do espírito pela qual quaisquer atribuições ulteriores lhe podem convir. Ora, o que se indaga é acerca do objetivo final do mundo. Logo depois, a indagação já comporta a consideração sobre o objetivo final da história do mundo. Em todo caso, esse objetivo é algo determinado no mundo. Hegel traça a progressão entre o pensamento, a natureza e o espírito, como sobejamente se comentou.
            Mas se o espírito se torna o termo a atingir como objetivo do mundo, e o espírito é tudo o que tem a ver, exclusivamente, com o ser humano, a história é a apresentação do espírito. Assim desenvolve-se mais uma vez o ritmo ternário, por que a apresentação envolve o que se desenrola na trama dos acontecimentos e essencialmente isso é a expressão dos aspectos separados do espírito: suas características abstratas, os meios que usa para compreender sua idéia, e a forma da plena compreensão da idéia.
           A idéia da liberdade se torna, portanto, o fio condutor dessa história que se duplicou, pois por um lado é a narrativa dos fatos intramundanos que envolve a ação dos seres humanos numa relação constitutiva com a invariância do estágio em que o alcance da idéia se encontra, mas por outro, é a progressão das invariantes, até chegar à compreensão plena do que é a liberdade, expressando-se nas instituições perfeitas, ou seja, na forma dessa compreensão que é o Estado: o objetivo final do mundo como realização do espírito por meio de sua idéia, a liberdade.
            Sendo assim, desde que uma invariante histórica, estando mais ou menos longe de sua própria plenitude, a liberdade nunca pode ser pensada como capricho, satisfação de desejos pessoais. No entanto, desde que não tenha atingido essa plenitude ela tampouco pode se liberar completamente de sua impureza, a mácula do estritamente individual mesclada à percepção do ideal.
             Essa complexidade permite, contudo, classificar os estágios da história. Ao proceder assim, Hegel está identificando o despotismo com a impureza máxima, o estágio mais afastado da consciência plena do sentido do ideal ( liberdade ). Portanto, em seu pensamento político o absolutismo deve estar rigorosamente separado do despotismo, pois o Estado moderno é aquele que realiza maximamente o ideal, aqui onde todos são livres – o pensamento de que um só pudesse ser livre, como no despotismo oriental, inevitavelmente conserva a liberdade na imanência do indivíduo, ainda que essa figura despótica estivesse institucionalmente representando o Estado naquele estágio inicial da história.
            Se a liberdade está se compreendendo na imanência individual não se pode evitar a impureza pela qual resta na idéia a sombra do capricho pessoal. Será então preciso pensar de algum outro modo a caracterização do príncipe do Estado moderno, em Hegel.
            A ambigüidade e a indefinição que Hegel constata estarem ligadas ao termo “liberdade” parecem ser o motor da história, pois são desses fatores polissêmicos que se estendem os “mal-entendidos, confusões e equívocos” a ser afastados na realização plena. O ponto a considerar agora seriam os meios pelos quais a plenitude da idéia se afirmou progressivamente barrando os obstáculos representados por essas acepções deturpadoras do sentido autêntico.
             É então que se desenvolvem os temas relacionados à ação na imanência histórica do mundo, ou seja, é por meio da consideração da ação, vista por todos os seus ângulos, que se compreende a progressão da idéia, desde o indivíduo ao sujeito social, desde o desejo ao dever, e desde o dever à ação. A Razão na História, nesses dois textos, repõe a progressão que vimos anteriormente, entre o direito, a moralidade e o Estado, pois são os mesmos eixos que repetem o ritmo ternário nessas duas variações.
             A ação, o Estado, como termos da síntese, iluminam o sentido existencial do personagem histórico, o herói, que é o sujeito naquilo que ele tem de supremo, o ter-se tornado o objeto do relato do mundo. O objeto agora é a concreção do objetivo, não simplesmente algo material que se opõe ao “Eu”, pois ultrapassou-se completamente o domínio da filosofia da identidade, o pensar tendo se instalado no pleno do vir a ser.
          Mas sendo assim a consideração dos meios, o desenvolvimento dos temas, precisa repor do ponto de vista do sujeito a progressão de si, desde o mais idêntico a si, o mais abstrato, o mais individual, ao mais idêntico ao todo, nesse sentido hegeliano, o mais singular, o mais histórico e geral. O percurso deve considerar como se conduz da paixão à virtude.
          A história usa a paixão do indivíduo como um meio para ultrapassá-lo no rumo do sujeito moral. O lodaçal dos atos torpes que a história registra está numa dependência da perspectiva individual que só vê os resultados na sua relação com um alguém, suposto ou idealizado. Na realidade o que ocorre é que a paixão, o interesse mais egóico, fornece o móvel à atividade e com isso, o meio termo que conduz dos princípios aos fatos. A lei que rege a vontade permanece abstrata, tendo que ser envolta na paixão que conduz ao ato, enquanto esse ato é o que preside à efetivação da história.
           O subjetivo torna-se a efetivação sem mediação (für sich) , isto é, real, do curso do mundo, pois é a necessidade, ligada à natureza, que impele à ação, mas desde que semeada no canteiro da história, a ação está destinada a trazer para a consciência aquilo que já estava implícito na experiência, como natureza. Ao contemplar a realidade do feito, então, o ser humano retorna ao que ele mesmo é, toma consciência do princípio, a lei, que dominou por sobre a necessidade e a paixão.O princípio ou lei eram apenas intenção, possibilidade interna, algo ideado. A necessidade ou paixão impelem à ação, mas a ação conserva uma relação com a lei, o princípio. Tendo sido realizada, a ação não deixou de estar em relação com o meio de sua realização, a cultura. Sendo assim, ao contemplar o feito, o seu passado, o ser humano contempla a tessitura que entrelaça a Idéia e a Ação.
           Logo, ele se compreende como sujeito histórico, não mais como indivíduo da necessidade ou da paixão. Ao constatar-se por esse viés, o sujeito se constitui moralmente, condena a paixão, exalta o princípio, a lei. Hegel mostra assim que a paixão na verdade é apenas a disposição do caráter que impele, do ponto de vista interno, conforme o indivíduo se considera na sua aparente irredutibilidade ao outro ou ao meio. Como tal ela não pode deixar de estar ligada à convicção, como duas metades inerentes à ação. Mas na ação todo o problema originado pela aparência da irredutibilidade desaparece, pois não ocorre ação não inserida na história ou num meio de cultura.
            As ações, nesse meio, estão ordenadas no curso do mundo, e agora o indivíduo já se tornou sujeito, logo, sua ação o põe numa relação objetiva com a história. Entre o sujeito e o objeto da história, entre o ser humano singular e sua ação possivelmente heróica e registrável no curso do mundo, está o dever, pois o que assegurou a transição foi a consciência do universal.
           Mas como se está conceituando o dever? A resposta de Hegel é um tanto surpreendente, pois ela põe em jogo o caráter da obviedade. O dever não está na adesão a uma máxima da vontade se não tipificada numa instituição de socialidade. Assim, ninguém precisa perguntar qual é o seu dever, pois ele é o mais evidente a qualquer um na sua posição social:  “investigar o conteúdo de um dever” é algo de que não ocorre haver a menor necessidade, e Hegel chega mesmo a considerar o dar-se um tal conteúdo de investigação o indício da vontade de se livrar do dever.
            A posição já é a do sujeito – como membro da família em relação ao outro membro, no exercício de qualquer função social, etc., não do indivíduo, e por isso não há o problema do dever, isto é, porque nesse estágio desapareceu o problema da irredutibilidade do indivíduo ao meio, como resolveu-se o impasse de necessidade e liberdade. A necessidade é meio para a liberdade, assim como o indivíduo é a abstração de algo real, que é o sujeito.
            O herói não é aquele que cumpre o dever de algum modo mais intenso do que os outros, que o negligenciam ou apenas agem maquinalmente. O herói é aquele que sabe interpretar a obsolescência de um dever. Pois se o curso do mundo implica na descontinuidade entre as invariantes de interpretação da idéia da liberdade, os Estados que tipificam os estágios de predomínio de cada invariante se sucedem. O herói é a figura da transição, ele sabe compreender a idéia que está vindo, que está para se tipificar numa forma de Estado sucessiva da que precede. Por isso ele é subversivo àquele Estado menos livre que precede, seus inimigos parecendo ter a forma da lei do seu lado. Pois essa “lei” só designa o dever imanente ao Estado que está para ser ultrapassado pelo Estado que se constitui como variante mais próxima da Idéia da liberdade, ou sua plenitude que implica ser a liberdade extensa a todos, ou pelo menos a um maior número conforme o momento da sucessividade histórica.
             Aqui não me parece tão oportuno desenvolver a psicologia do herói no texto da Razão na História, algo que, contudo, é extremamente interessante. O que me interessa aqui é mais, justamente, aquilo que o texto prossegue negligenciando, o sujeito comum do dever na estabilidade do Estado constituído. Pois me parece que nada poderia ser mais evidenciador do liberalismo de Hegel, já que a forma máxima desse pensamento é a tipicalidade do sujeito, pelo que o Estado se constitui na sua imanência. O caráter de transcendência que a teoria do Estado apresenta se torna algo apto a suportar a imanência desse sujeito típico, e é pela forma da Subjetividade Absoluta que a transcendência pôde, afinal, ser estabelecida no horizonte da história.
           Pois se pôde ser tematizado, mesmo assim, o desvio da história, o mal que consiste na resistência ao dever de modo algum chega a ser proposto como o problema da sua instituição, isto é, como se pudesse reverter como a legitimidade prévia do indivíduo na sua imanência de natureza. É verdadeiramente espantoso esse modo de colocar o dever na relação com sua obviedade, pois tudo o que se tem normalmente é o dever como o problema de sua instituição, do ponto de vista dos indivíduos. No entanto, pelo modo como encaminhou a questão, Hegel liquidou a raiz do dever como algo correlato ao sujeito na anterioridade da cultura.
             Assim, se o problema do mal foi tematizado, ele é uma possibilidade da história, não das pessoas que interrogam sobre como devem agir. Por um lado, essa interrogação é o mal pessoal. Por outro, ela é a abertura da história, pois trata-se do conflito configurado pela transitividade dos Estados, das formas sucessivas da Eticidade.
             Por isso, creio que seria mais coerente com a doutrina de Hegel supor, como Hartman, que ele não determinou o Estado germânico de sua época como o objetivo final da história plenamente realizado. Em todo caso, não há possibilidade, nessa doutrina, de se obter uma justificação do interior para o questionamento acerca da adequação do que lhe foi prescrito conformemente às posições que ocupa. Isto é, uma justificação do ponto de vista do indivíduo, pois não existe ponte do indivíduo à história. Mas se o sujeito só pode ser histórico de ponta a ponta, então é preciso situar o seu descontentamento, por relação à história.
            Sendo assim, a realização final do objetivo do mundo não pode ter sido atingida enquanto o sujeito permanecer passível da interrogação sobre o dever. Como naturalmente não parece ter sido o caso de Hegel ter suposto que ninguém estava indagando sobre isso na sua época, seria, a meu ver, contraditório que ele a houvesse conceituado como a plenitude da Razão alcançada no mundo.  Além disso, Hegel introduziu a noção da América como o lugar do futuro.
           O que a efetividade histórica do Estado moderno permite aceitar, dadas essas premissas, é o que está envolvido na invariância interpretativa da idéia de liberdade. A cada estágio o Estado que se põe na frente do processo é aquele que melhor enuncia a interpretação correlata. Portanto, que Estado seria, para Hegel, o que no seu momento histórico enuncia a idéia racionalmente enunciada da liberdade? Aqui a questão intercepta o problema de saber como ele conceituou o absolutismo. Ora, se esse regime enquanto moderno está na maior proximidade com a plenitude da liberdade é porque aqui todos são livres, o que implica que a monarquia é constitucional, não a expressão da vontade do déspota, mas sim a expressão da legitimidade do elo social do povo.
             A representação pelo monarca não depende da alienação da vontade particular, pois ela está aí para garantir o exercício dessa vontade engajada nas relações contratuais que se celebram, porém, exclusivamente no âmbito da sociedade civil. Mas se ela o garante pelo poder das leis e o exercício do governo, essas leis e esse exercício só estão expressando a força que é interpessoal e, conclusivamente, “impessoal” , desse poder engajar-se. É isso que o texto da constituição formaliza. A garantia é o reverso formal que tem como conteúdo o engajamento social constitutivo dos sujeitos. “Impessoal” portanto, se refere à subjetividade elevada ao absoluto. Creio ser isso a essência do liberalismo de Hegel, algo impensável antes na história da filosofia.
             O Estado germânico absolutista constitucional surge na concepção de Hegel,  como aquele que realiza a plenitude da liberdade apenas no modo pioneiro ou inicial dessa aproximação do ser humano-histórico à Razão, ao significado autêntico da idéia. Hegel focaliza assim, na verdade, o momento moderno, isto é, aquele que está na sua época configurando a retaguarda do processo de transição ao mundo democrático da contemporaneidade. Mas isso que, frente ao contemporâneo, ao pensamento que inspira a revolução francesa, é o retrocesso, se visto do ponto de vista da evolução do Estado desde a Renascença, representa o apogeu, a plenitude do que vinha se desenvolvendo, precisamente o ideal da monarquia constitucional “representativa”.
               No entanto, esse Estado de maior plenitude da idéia poderia estar na prática apenas se interpondo como um bom caminho no rumo do objetivo final, isto é, sua quantificação vantajosa sendo apenas relativa, conceituada frente ao que vinha anteriormente se apresentando, quando a plenitude formalmente atribuível como a consecução da felicidade ou Razão universal seria a realização absoluta.
               Pelo Estado "moderno", isto é, nessa acepção "hegeliano", o ser humano alcança a instituição governamental mais viável da realização do espírito, na visão de Hegel, mas isso não quer dizer que não seja preciso ainda aperfeiçoá-la, seja quanto às leis que podem precisar ser revistas, seja quanto aos costumes, que precisam de tempo para se pôr à altura das leis e de uma (possível) constituição perfeita.
            Assim, aos contemporâneos de Hegel pode ter sido um caminho de interpretação válido supor que a forma do objetivo final havia sido alcançada com o Estado monárquico, mas não o seu conteúdo, enquanto outros supõem que ele afirmou que ambos os itens haviam sido logrados no seu momento histórico como o apogeu da Razão, de modo que Hegel teria sido o propagandista do regime. Mas basta atenuar essa noção de que o Estado monárquico constitucional apresentou a forma mais viável da realização do espírito, para instaurar a possibilidade da interpretação do hegelianismo de esquerda, quando se conserva apenas a perspectiva pela qual a sucessividade das formas legais enunciam a legitimidade do processo histórico no rumo da liberdade, o que implica a ação revolucionária dos sujeitos.
               Em todo caso, mesmo esse atenuar precisou encetar a torção da dialética, do idealismo ao materialismo, pois de outro modo a ação revolucionária teria que ser moldada na forma da subjetividade, na figura parcializada do herói. Ora, se é isso que o marxismo terá que recusar com todas as suas forças, é justamente por que a ruptura com o liberalismo depende da crítica da forma da subjetividade "burguesa".
                Com Hegel, a subjetividade é a realização plena do dever como algo não exterior a si, e sim como a vontade socializada. A tensão do sujeito enquanto ser moral reflete a natureza dialética do processo histórico, mas não o isenta dos laços para com a família monogâmica, a sociedade civil, o regime governamental, tudo isso refletindo a forma fundamental da vontade que é intenção da coisa, desejo da posse, quintessência da propriedade na leitura dessa subjetividade como burguesa.
             Marx não pode, porém, na sua crítica ao hegelianismo, retroagir ao indivíduo, como fez Stirner. O que ele faz é aperfeiçoar a noção de sujeito socialmente definido para transformar a ação revolucionária numa necessidade lógica surgida dessa brecha dialética que se efetiva como processo da história.
            Tanto Marx quanto Stirner estão atacando o idealismo dessa conceituação dialética, mas para Marx trata-se de permanecer na imanência da história, para Stirner trata de denunciá-la como o avatar de todo ideal, já que supõe uma realidade superior, como realização social, ao indivíduo na sua irredutibilidade a todos os outros, como mostrou Dotti no seu artigo.

                                                                                                                  --------------------


               O texto de Bréhier permite localizar mais pormenorizadamente esse conflito de interpretações quanto ao papel da monarquia constitucional gemânica em Hegel. Inicialmente há a sobreposição que ele constata entre as perspectivas de Santo Agostinho e Hegel, quanto à marcha da história. À contraposição das duas cidades, Hegel teria propiciado a sua fusão, pois se não ocorre mais uma história mundana distinta da história sagrada, resta que só havendo a história sagrada esta apresenta sua evolução – e por isso ela é sagrada, não apenas uma sucessão de fatos fortuitos – na efetividade política mesma, no espaço do mundo.
              Aqui Hegel está se contrapondo a um ideal católico que parece ter sido bastante acalentado no romantismo, por exemplo, com Schlegel e Lamenais, pelo que, conforme a sugestão platônica, na história política efetiva há apenas restos mais ou menos ruinosos de uma tradição originariamente perfeita. Essa hipótese mística se encontra ainda hoje em Guenon. Ora, poder-se-ia supor que, só por isso, seria nitidamente aproximável o pensamento de Hegel daquele ideal do progresso iluminista. Mas ocorre aqui uma contraposição, pelo que que mostra Bréhier.
            Pois ele opõe “progresso”, no sentido de “perfectibilidade”, a “evolução” (Entwicklung), o que seria autenticamente o conceito hegeliano. Enquanto a perfectibilidade deixa supor uma ordenação puramente pragmática ao longo dos erros confrontados a necessidades bem explícitas, a evolução que Hegel conceitua é uma teoria de desenvolvimento partindo de um “germem espiritual” cujos traços originários já contem virtualmente a história inteira. Essa perspectiva da evolução pode, também, não ser exatamente a de Darwin, onde o acaso e a ambientação são fundamentais, de modo que não se propõe que as características de todas as espécies já estão desde o início exatamente como puderam se mostrar, muitos acidentes devendo intervir para moldar o seu curso.
            Parece ser justamente esse caráter da contingência que está sendo negado por Hegel. Pois que o detalhe da paixão, do singular, é utilizado pelo espírito, aqui apenas significa que o plano, a finalidade, já está de antemão assegurado, traçado, determinado. Ora, sendo assim, é esse plano, como a realização de Deus, Subjetividade Absoluta, que importa visar sobre todos os aspectos menores de sua aplicação. É nesse sentido que se pode compreender por que a doutrina do Estado, que parece o momento máximo do Espírito, já que implica o objetivo final do mundo, está localizada como aquela do espírito objetivo, restando algo mais, a doutrina do espírito absoluto. Aqui, na concepção de Bréhier, se a tríade envolve a arte, a religião e a filosofia, a religião é o verdadeiro fundamento, não apenas o momento segundo.
          Tudo se destina pela religião, como pelo sentimento religioso, a ligação com o fundamento. Não haveria sentido no pensamento de um Estado que não fosse a expressão da alma religiosa do seu povo, pois a suposição de uma simples coleção de leis sobrepondo-se como expedientes de uma casuística generalizada, parece a Hegel totalmente artificial. É interessante que aqui “artificial” não se opõe a “natural”, mas a “espiritual”.
              Bréhier conduz então ao tema da finalidade dessa história espiritual para Hegel. Vimos que o texto de A Razão na História lidava com uma progressão de três termos, o Oriente, a Grécia e a modernidade. Agora Bréhier utiliza uma dualidade fundamental para introduzir o problema da destinação da história ao absolutismo constitucional germânico. Trata-se de uma oposição que Hegel traça entre os espíritos dos povos latino e germânico. Isso relança a oposição que ele conceitua no texto sobre a História, entre o cidadão e o indivíduo.
             Lembrando a oposição conceitual entre indivíduo e sujeito, o segundo termo da oposição cidadão versus indivíduo está por sujeito, não pela irredutibilidade do ser natural. Ora, o povo latino, católico, seria tipicamente um povo de cidadãos, enquanto só o protestante, germânico, teria acesso à subjetividade. Isso por que o cidadão é o humano típico do estágio espiritual representado pela Grécia, e por extensão, por Roma. Aqui há exterioridade entre a moralidade e a espiritualidade, entre o Estado e a religião.
             Penso que se deve observar como a análise de Hegel parece artificial frente à realidade histórica, pois o desenvolvimento que se observa é do Estado antigo, prolongado no feudalismo católico, em que há uma imbricação inevitável entre esses dois aspectos, e o Estado moderno leigo, que vem sendo afirmado desde o absolutismo monárquico de feição liberal até se efetivar como o Estado democrático da contemporaneidade.
         Hegel procede uma inversão histórica notável, nesse ponto. Ele pensa que o cidadão greco-romano, que termina por identificar simplesmente com a latinidade, coloca de um lado a piedade e de outro a lei – conforme Napoleão teria expressado ao afirmar, “bem”, em todo caso, “retornaremos à missa”.
         Hegel aproveita para colocar nesse mesmo rol o ideal dos revolucionários franceses, mais a concepção iluminista do Estado pragmático, que o pensa como simples agregado de vontades atômicas em que cada uma é absoluta. Enquanto que, no outro extremo se poderia situar o Estado, único absoluto verdadeiro, como concepção intrínseca ao espiritualismo protestante germânico. Aqui não ocorre separação de direito e religião.
           Bréhier conclui mostrando que para Hegel “a superioridade definitiva do germanismo é, portanto, uma superioridade espiritual”. A “raça” possuiria assim , na expressão de Bréhier, “qualidades naturais que lhe permitem receber a mais alta revelação do Espírito”. Mas aqui seu texto desdobra uma nítida ironia, pois ajunta que não seria tanto “a superioridade da raça como tal”, que está sendo afirmada, “mas apenas relativamente a um momento determinado, o momento final, da história do mundo”. Ora, tanto mais se afirmaria assim a preminência.
             Parece ser lícito compreender esse posicionamento de Bréhier como oposto à tese do liberalismo de Hegel, favorável à idéia de que sua doutrina do Estado é teológico-política, e que Hegel pensou o Estado germânico protestante como o objetivo da história do mundo. Não seria tão prontamente relacionável que esse Estado é aquele de sua época, mas isso parece bem defensável.
            Já enunciei os termos pelos quais parece-me que, ainda assim, o pensamento de Hegel é liberal, e que há razões para supor que Hegel havia pensado a política do seu tempo como o lugar em que, finalmente o problema histórico se tornou bem colocado, mas não totalmente solucionado, já que isso só seria possível numa plenitude de felicidade efetiva obviamente não afirmável do mundo. Além disso, tratava-se nessa época de pensar o Estado pelo viés da legalidade cujo nexo seria a liberdade de todos, contrapondo-se a isso o que se colocava como o tipo estatal até aí imperando como aristocracia típica do poder católico  feudal exemplarizada pela latinidade, o ideal classicista.
          É verdade que Hegel não tinha muita simpatia com o ideal de felicidade individual. Ele considerava como a vítima da história justamente o sujeito que procura exclusivamente a felicidade privada. A vítima estava assim contraposta exemplarmente ao herói que, não se importando com esse ideal de dever solipsista, valorizava unicamente a grandeza, pelo que não se importava com as conseqüências do seu afrontamento da lei injusta a fim de substituí-la pela justa instituição. Mas também se pode notar que Hegel propõe o devir como o progresso rumo a um estado de felicidade da espécie, como realização do objetivo do Espírito.
          Além disso, todas as rubricas atinentes à religião e Estado em Hegel estão atualmente relativizadas pelo problema da censura. Como se sabe, e tendo sido sublinhado por Marcel Régnier, a filosofia religiosa de Hegel foi criticada na sua época por Schleiermacher e pelos círculos pietistas de Berlim, o que segundo Régnier "provocava  inquietações à Sra. Hegel". Então, pode ser que muito dos seus escritos tenham sido estilizados a fim de não causar problemas nesse sentido, ainda que mesmo assim a censura religiosa tenha sido praticada.
             No outro pólo está aquela contraposição do cidadão e do "indivíduo", isto é, não obstante o termo, significando apenas o sujeito da moralidade social. Esse ponto é mais importante aqui, pois não somente enfatiza a oposição dos tipos latino e germânico, que nessa época está tipificando a antítese entre os ideiais clássico (greco-romano) e cristão (gótico, bárbaro convertido) como coloca em relevo o tema da interioridade.
             O romantismo havia sido conceituado já em W. Schlegel, em termos do conflito pagão, Renascentista, classicista versus cristão, medieval, romântico. Se a evolução da teoria literária conduziu a uma complexidade maior na definição do romantismo como um movimento que evidentemente não ficou só nesse início mas se ramificou consideravelmente – até ficar a dúvida sobre se existe alguma definição ainda pertinente – essa contraposição é amplamente utilizável como ilustrando a irredutibilidade de Nietzsche a Hegel.
          Ao elogio do pólo Norte- germânico-cristão se contrasta o ideal nietzschiano do “Sul”, clássico e pagão. A simetria inversa é perfeita até pela eleição do habitat filosófico, para os românticos a nacionalidade germânica, para Nietzsche a Italia, assim como o passado ideal no sentido do lugar da formação cultural europeia. por extensão o modelo do que é a cultura em se produzindo, para aqueles era a entrada gloriosa dos bárbaros na Europa em seu movimento de assimilação-reforma do catolicismo, e para Nietzche, a Renascença com sua tranquila estabilidade de povo e aristocracia harmonizados no pequeno principado de tradições há muito constituídas. Há também o contraste do "tipo" em que a cultura se propaga ou realiza, no Romantismo sendo o processo popular de assimilação de valores de proveniências múltiplas, para Nietzche sendo o nobre ou o artista que produz os modelos que o povo deseja imitar, se bem que é num fundo de cultura comum e local que o artista se inspira. 
           Nesse ponto há algo interessante a propósito das relações entre Nietzsche e o romantismo, pois a teoria da cultura nietzschiana, exposta nos Escritos sobre Educação, está sendo ancorada na sua concepção de arte como exercício, cultivo, técnica, acúmulo de conhecimentos especializados, a qual ele contrasta ao que seria a noção romântica de arte como transbordamento emocional. Ora, os românticos ligados ao círculo de Schlegel, a Novalis e Holderlin, na verdade de modo algum se ativeram a qualquer transbordamento, e foram os que introduziram a noção de arte como profissão, exercício e cultivo, na transformação social contemporânea do status do artista. Sob a rubrica da "sobriedade", a crítica romântica de arte expressou precisamente esse profissionalismo contra o mero transbordamento passional, em se tratando do fazer artístico "moderno", isto é, romântico nessa acepção de pós-clássico.
          O que está implícito no ideal protestante de Hegel é aquele conceito de sujeito social, oposto à exterioridade da lei ao cidadão que apenas a observa mas não a interioriza. Aqui não se trata apenas da formação ética, é principalmente a formação da subjetividade que está em jogo, o que Hegel mesmo expressa ao nomear o processo histórico da realização do ideal como a formação (desenvolvimento) da consciência. Mas é preciso conservar o que significa “consciência” nesse contexto, assim como Hegel muitas vezes repete que a questão fundamental é compreender o que é o espírito.
         Trata-se da consciência como interioridade moral. Aquilo que vimos permitir o trânsito entre o indivíduo e o sujeito, mas que ao mesmo tempo é o meio da objetificação do espírito no Estado. O espírito é assim a inteira e absoluta unidade de todos os aspectos do real, sobretudo incluindo a consciência dessa unidade. É Deus, mas o Deus encarnado no mundo, no homem e na história. Isso é o que acarreta as críticas dos religiosos à Hegel. Ele teria reduzido o conteúdo da revelação ao saber revelado, o Cristo à cristologia. Régnier recenseou as posições contrastantes a propósito do pensamento religioso hegeliano: há os que consideram que as críticas eram injustas e que ele era um cristão autêntico (Brunstäd, Schweitzer, Marheinecke), e os que o rotularam panteísta ou mesmo ateísta (K. Lowith).
       Em todo caso, essa historicidade do divino em Hegel é a “liberdade”. A imagem dessa subjetividade é portanto a sua destinação à objetividade do que ela interiorizou, as leis da moral, o Dever - mas como vimos, esse dever é a própria historicidade, por aí a problemática psicologia do herói. A leitura otimista dessa teoria compreende isso como a epítome do intersubjetivo, da destinação ao outro própria do humano, do ideal do progresso político-espiritual. A leitura pessimista vê nesse conceituar uma alienação do indivíduo, que ele relegou ao mais abstrato, mas que na verdade seria o mais concreto.
           Assim, encontra-se aqui o problema que acima assinalei como da leitura mais atual de Hegel, posto que trata-se da questão fundamental a propósito da alteridade. Robert Williams, no estudo citado a propósito do tema do reconhecimento em Hegel, desenvolveu precisamente essa questão, começando por notar que Hegel  introduziu de fato uma ruptura com a lógica da identidade na filosofia, enquanto Deleuze ignorou essa ruptura, tratando o reconhecimento em Hegel como se ele fosse o mesmo que a recognição em Kant. A meu ver isso poderia ser generalizado para todo o pós-estruturalismo quanto à leitura dos pensadores relacionados ao romantismo de Iena e especialmente Hegel. Williams examina os dois textos deleuzianos Diferença e Repetição, e Nietzsche e a Filosofia. A meu ver é na aplicação de fórmulas poéticas por ele selecionadas à filosofia de Kant, que Deleuze mostra a sua efetiva inapreensão do que está em jogo nesse entorno em que se faz a pioneira  conceituação de subjetividade como agente na história.
              O cerne do problema, conforme Williams,  está na compreensão do Reconhecimento como o momento da formação da subjetividade, mas mantendo esse conceito de subjetividade na imanência do texto de Hegel pelo que ele significa a ruptura com a abstração da individualidade através da interiorização da moralidade. O essencial é que a subjetividade em Hegel  institui-se  na abertura do universal que o reporta ao outro, não ao modo kantiano como o imperativo generalizante de uma máxima moral, cujo dispositivo consiste na abstração da alteridade posto que a máxima seria afirmável se atribuível a todos universalmente, sem consideração para a questão da irredutibilidade cultural e da linguagem - como podemos lembrar ter Herder objetado a Kant.
            Como Williams demonstrou, no que concerne à dialética do reconhecimento no hegelianismo trata-se da mediação intersubjetiva, somente pela qual algo como o sujeito se pode formar. Se o sujeito pudesse ser pensado como o mero ser irredutível aos outros na sua individualidade, nada disso seria preciso. Mas como o sujeito só pode ser para os outros, a subjetividade é um efeito da intersubjetividade.
              Ora, o erro que me parece notável no pós-estruturalismo quanto a isso, é que esse efeito eles leem como se Hegel e os românticos o pensassem como uma facticidade, sem mais necessidade de explicação, todos os valores estando inscritos na alma e entre esses valores estando o altruísmo cristão. Não ocorre essa redução nem em Hegel, nem na psicologia espiritualista de Biran. Como observou Williams  na dialética hegeliana do senhor e do escravo, “o 'eu' requer um outro para objetificá-lo de modo a sair da identidade abstrata e tornar-se assim consciente de sua própria liberdade”.
                  O que implica a lógica do reconhecimento, pelo que o que está em jogo é a transposição do desejo, desde a sua intenção ao objeto à relação com o outro do desejo, o outro sujeito. O desejo só pode encontrar satisfação, do lado do objeto, com a supressão daquilo que deseja, a consumação do objeto, portanto a auto-supressão do ato de desejar. Mas ao voltar-se ao outro, o desejo encontra algo que lhe resiste, que continua a durar.
              Isso induz à luta, pois não há mediação institucional que garanta, por enquanto, que há duas fontes do desejo, não apenas um desejar e um oferecer-se à satisfação. A instituição moral é o que resultará como garantia da vitória da moralidade sobre a simples existência. Pois a instituição é, inicialmente, o contrato da escravidão, que dá ao mais fraco o direito de existir sob a condição de respeitar o mais forte. São, contudo, as duas posições do desejo que assim se tornam sancionadas no seu recíproco contratar. Com o tempo é isso o que vem à tona para ambas como conscientização da sua situação histórico-institucional.
            O escravo se liberta por meio do trabalho, e a lei vem a se constituir num Estado constitucional em que todos são livres, a lei não lhes sendo imposta como simples dever sem que se a compreenda como facultando a coexistência dos sujeitos múltiplos desejantes. A lei aqui é praticamente o oposto do imperativo categórico kantiano. Não consiste na anulação do que há de pessoal ao desejo de cada um, pois isso seria impossível, e sim no algo mais que há no ser  humano, o desejo na convivência pelo que há conciliação com o desejo do outro tampouco abstraível ou abstraído na lei.
             Essa conciliação portanto, não é abstrata, como Hegel objetou a Kant, e sim histórica e  institucional. Por isso não me parece de todo suficiente a concepção de Derrida a propósito da teoria do signo em Hegel, como meramente representativo, abstraível pelo significado. Hegel de fato, como os românticos em termos daqueles para quem as ciências do espírito tem objetos específicos, não pensa que se possa abstrair a letra, a instituição concreta e histórica na sua variação inerente que é o que importa ao estudioso em cada campo das ciências do espírito.
               Williams mostra que Deleuze está incorretamente denunciando a anulação da diferença no hegelianismo, identificando como objeto da crítica de Deleuze o fato de que a contradição está apenas no interior de um movimento para a síntese.  Conforme Williams, o que se deduz de Hegel é, sim, 
um “anti-sistema”,  porque ele conserva o contraditório, não o elimina simplesmente no caminho para a síntese.
                De fato, quanto a Rimbaud, pode-se ver que Deleuze pensa que sua fórmula "je est un autre" se reduz aristotelicamente como ao intervalo do ato à potência, entre o que se era antes e o que se vem a ser depois - e assim, toda lógica de identidade em Diferença e repetição Deleuze havia esquematizado como sempre redutível às exclusões aristotélicas da diferença. Mas se fosse lida como fórmula do kantismo, para Deleuze a fórmula "je est un autre" de fato falaria  a alteridade  interposta entre o empírico e o transcendental. Por aí, em diferença e repetição tratava-se de mostrar que Kant finalmente retroage à lógica da identidade porque decalca o transcendental do empírico, mas que ele não tinha deixado de elevar a filosofia ao transcendental que se trataria então, para Deleuze, de colocar no elemento de sua independência ao empírico, onde o que aparentemente ocorre é somente a recognição do idêntico.
             Ora, a questão é justamente que o Romantismo procede o ultrapassamento do transcendental kantiano porque este se atém a uma teoria, digamos, iluminista, da recognição - inclusive do próprio eu como empírico. Não creio que haja duplicidade real na teoria kantiana, entre o eu empírico e transcendental, cujo propósito foi, como tradicional na história da filosofia desde Platão, identificar sujeito e razão intelectiva, de modo que o propriamente empírico no sentido de físico ou histórico se vota ao impensável como ao que não tem sentido pensar. Mas o que o romantismo como um pós-kantismo objetou a Kant foi que seu sistema não chegava a nada mais que um paradoxo, já que o numênico voltava a ser o sujeito da razão prática - logo, assim ela não podia ser pensada como Kant pensou, nos termos da abstração universal do imperativo. O que o Romantismo operou foi a transformação na concepção de razão que agora não estava limitada ao exercício intelectivo do entendimento, que fornecia no kantismo também a regra de generalização abstrata à vontade.
              O que Rimbaud expressa como duplicidade ou alteridade no eu, não é o que Schelling ironizou com o epíteto "atuosidade", a redução factual da agência do sujeito na história, mas o intervalo impreenchível do desejo entre o indivíduo e o sujeito, entre o desejo pensado natural mas de fato somente atuável para si enquanto social, Impreenchível, mas realizado na história do sujeito. A meu ver, a não apreensão dessa alteridade da cultura interposta pelas "ciências do espírito" comprometeu irremediavelmente também a leitura foucaultiana da modernidade, no seu As palavras e as coisas.
                 O desenvolvimento da exposição de Williams conduz à aporia da leitura de Nietzsche: seus conceitos de senhor e escravo são ou não os mesmos de Hegel, que em caso afirmativo, ele teria apenas invertido? Williams afirma a hipótese da inversão, e critica Descombes que pensa que o que Nietzsche teria objtado a Hegel foi que o senhor não se posiciona frente ao escravo do mesmo modo que o escravo frente ao senhor.
           Isso de fato foi também o que Deleuze investiu no seu estudo sobre Nietzsche e a filosofia, onde demonstra que Nietzsche pensou haver dois ethoi, duas moralidades diversas entre o senhor e o escravo, e que se a do senhor era nobre, a do escravo era vil. No entanto, se fosse assim esse senhor não teria a razão de ser do seu sentir-se senhor no fato de subjugar o escravo, ou meramente do escravo existir. Para Nietzsche, conforme Deleuze, o senhor é aquele que a priori afirma sua própria excelência. Por oposição, o escravo é aquele que só afirma sua excelência por que a priori a nega do senhor. Assim, inversamente ao senhor, o escravo só se põe a ele mesmo por seu julgamento negativo do senhor e porque o senhor existe. 
           Essa tese, contudo, é de difícil apreensão, por que senhor e escravo não são pensáveis independentemente, são relacionais, mas Nietzsche está afirmando que o senhor é pensável independentemente, enquanto que o escravo, não. A meu ver a aporia se esclarece se lembrarmos que entre o Romantismo e Nietzsche se interpôs a sociologia, a naturalização do que eram as ciências do espírito, e a história não mais explicava, ela é que estava tendo que ser "explicada", isto é, "esquematizada". Senhor e escravo, dois sistemas irredutíveis, e sistema nesse caso, como também para o Deleuze do Anti-Édipo, significa estrutura a-histórica, forma eterna de um funcionamento.
            Aqui, no entanto, não seria oportuno desenvolver a inquirição do pensamento nietzschiano e sua conexão histórica - que a meu ver, deixou de ser abstraível pelo sistema, na pós-modernidade - com o momento pós-positivista, e sim voltar ao exame do pensamento hegeliano.

                                                                                                             =========
          

            O pensamento hegeliano da história coloca ainda a aporia do o herói. Como já observei, a tentativa de manter a história num âmbito dos feitos dos grandes homens foi contrastada ao que seria a perspectiva de Hegel. O estatuto do herói, que vimos ser por ele conceituado na história,  não pressupõe “espontaneidade ontológica”, conforme a expressão de Robert Hartman, pois não há nada nele que não esteja previamente na idéia, independente dele. Hartman logo procura atenuar esse determinismo, aduzindo que na verdade o sistema de Hegel não pressupõe que o universal “usa” o particular, mas que “toma sua natureza plena no/através do herói”. Ora, o herói deixa assim de se apresentar tão nitidamente oposto ao homem do dever, que é o sujeito.
             Vimos que a contraposição dessas figuras de homem vinham de que o herói transgride o que parece a lei, mas está na via da superação pela própria lei do espírito, enquanto o sujeito apenas se constitui pela imanência a si da interioridade moral. Como se sabe, "herói" na concepção ética e estética corrente implica na teoria clássica alguém de quem se faz a abstração da individualidade, que encarna puramente o ideal de uma cultura - ao modo de Aquiles ou Ulisses.
           Por que a literatura desde o Romantismo não produz o relato desse herói épico típico, mas somente do sujeito comum, Benjamin deduziu que na modernidade não existe o herói, enquanto Bakhtin, inversamente, conceitua o romance contemporâneo como aquele em que o herói personifica o processo de se autocompreender como auto-consciência e subjetividade e por isso todos os outros personagens nesse romance não são realmente sujeitos, são apenas espelhos pelos quais o herói consciência perfaz sua trajetória de auto-desvelamento. Hegel, como acentuei,  tematiza um contraste de hérói e sujeito comum, mas inversamente ao épico, o herói sendo aquele que transgride o dever obsoleto contranstando-se do sujeito incapaz de apreender a mudança histórica, ou então o herói é aquele que se arrisca na transgressão necessária enquanto o sujeito comum,  mesmo sabendo-a necessária, se aferra à segurança individual. Com relação ao problema do herói em Hegel, Hartman afirma que se atenua pelo fato de que o herói só pode ser um caso especial de sujeito, nunca um tipo “puro” de indivíduo.
            Ora, o herói pode assim tiranizar os indivíduos, mesmo os sujeitos aferrados ao obsoleto que lhes parece, contudo, o dever?  Hegel, conforme Hartman, justifica isso mostrando que, apesar desse detalhe lhe incomodar, ninguém pode se furtar à lógica do espírito. A vítima se tornou algo fundamental no processo, desde que deslocou o qualquer do sujeito da moralidade para tipificar apenas um caso desse sujeito, aquele que se aferra ao dever obsoleto, mas que lhe parece vigente. Ora, esse aferrar-se seria apenas egoístico. O sujeito social que só quer a felicidade própria, identificando-a porém com a sua própria imagem do que seja o dever, ou seja, sem ter nada a ver com o indivíduo anárquico, deve ser sacrificado pela grande figura do Herói que tipifica a idéia e o progresso da história, na medida que se põe como seu antagonista 
histórico.       
            Isso na verdade não me parece tão original em Hegel, pois já havia sido afirmado em Locke, cujo ideal político também era a constituição. Mas  para Locke não era proposto como requisito do herói, e sim  reservado a todos nós a legítima defesa contra os que ostentam inimizade à nossa existência, assim como a sociedade, conformre Locke, tem o sagrado dever de destituir um governante se ele não se mostrar coerente com sua posição de representante dos interesses de sobrevivência e bem estar dessa sociedade. O que Hegel inova é na historicização dessa ação, caso em que a sociedade se torna um conceito conexo ao das lideranças políticas que conduzem à solução do seu conflito.

   

                        4 -   Espiritualidade

               
               Hegel transformou a noção de cristão, desde o medievalismo católico, ao liberal-absolutismo germânico protestante, altamente informado pela noção de interiorização da Lei - no entanto, não como algo que pudesse ser explicado como um acontecimento extrínseco à concepção do sujeito. Enquanto sujeito, a lei é sempre interiorizada, mas na história, nem sempre a lei foi pensada em função do sujeito, o que só ocorre na modernidade, conforme Hegel.             
            A questão dessa visão da história em sua relação com a premissa de ser uma "ciência do espírito" envolve a filosofia de Hegel de modo particularmente profundo: podemos considerar as ciências do espírito, já as ciências humanas? Questão complexa, porque há também recusa de humanities como ciências, e a questão teria que se estender à existência de ciências do humano em geral.  Se a decisão for que as ciências do espírito e/ou a visão hegeliana da história, não são ainda ciências humanas, em que ponto poderíamos detectar a ruptura em que estas já poderiam ser afirmadas, se for o caso?  
          Não se pode dizer que ciências do espírito e ciências humanas sempre coincidem, posto que no interregno positivista, tratava-se de pensar que as ciências humanas existiam,  mas não como irredutíveis às da natureza e sim como extensões destas a campos antes tratados pela filosofia, por onde ter havido eliminação da questão de sujeito e cultura enquanto problemática socialmente relevante. Em princípios do século XX, volta a haver demarcação da autonomia, mas agora da rubrica ciências humanas,  frente àquelas da natureza.  O pós-estruturalismo rejeita a rubrica porque não haveria ciência diversa do método estrutural, ainda que não mais predicando sistemas universais, mas sim localizáveis historicamente. O exame da filosofia de Hegel se torna sempre mais importante na condução dessas questões que se mostram incontornáveis, pois já não podemos aceitar o simplismo do diagnóstico pós-estruturalista de algo unívoco ao modo de "ciências humanas" na exterioridade da estrutura, como simples representação, etc.
           A espiritualidade em Hegel é algo que se interconecta à sua estética, que ora se visa na tendência de Bréhier, ora naquela de Chatelet. No caso de Bréhier, trata-se de destacar a unidade de conteúdo assegurada na obra de Hegel pela forma, contrastando sua apreciação nesse ponto à de Hartmann  que como assinalamos acima, a interpretou como  profundamente cindida do conteúdo como um lado inverso. Essa forma, em todo caso, é a filosofia da história, que se aplica aos momentos representativos do espírito absoluto, arte, religião, filosofia.
           Assim, as abordagens do hegelianismo pela via do conteúdo são exeqüíveis desde que se o pensa ssitematicamente in-formado, enquanto as abordagens pela via da forma só se realizam seccionando-a como algo destacável, independente do conteúdo, aplicável a outros contextos.
           Aqui a recém-esboçada autonomia desses campos os enuncia como atividades espirituais, reais, concretas. Mas sua postulação por meio da representação dialética da Subjetividade Absoluta anula teoricamente tal autonomia que a própria teoria parecia haver assegurado, pois trata-se, para compreender essas atividades, de conceder-lher o sentido que possuem verdadeiramente, ou seja, trata-se de localizá-las na imanência do seu objeto concreto. Ora, como Hegel já está se expressando em termos de “ciência do espírito”, ele precisa definir qual é o objeto: trata-se do humano.
         Em qualquer desses campos, por exemplo, o da religião, todas as manifestações isoladas podem ser escalonadas como graus de um desenvolvimento preciso. A escala supõe a região absoluta como a verdade dessas formas isoladas, o Saber do Espírito que pode se totalizar como o Universal, como o sentido, por ter-se previamente definido o seu horizonte objetivo, o ser humano na sua espiritualidade, ou seja, na sua interioridade, essa região supra-sensível que é a da liberdade.
          Essa rota para o mais íntimo, que é ao mesmo tempo o mais universal, não abrange apenas cada forma isolada na sua imanência estrita, ela reúne os campos de imanência, os destina uns aos outros, e faz da filosofia o termo da sua perfeição.
         Bréhier observa, criticamente, como essa unidade forma-conteúdo parece artificial. Na verdade, história e dialética estão mais para a incompatibilidade do que para o fácil predestinar-se uma à outra, mas ele pensa que Hegel se propôs seriamente uni-las. Os obstáculos a uma tarefa assim parecem mais óbvias no que tange à arte, e Bréhier sugere que na verdade são dois os processos dialéticos envolvidos na análise de Hegel, ambos como caminhos da conversão do material, aquilo com que as artes lidam, ao espiritual, que seria a sua destinação exclusiva.
          Inicialmente há a interiorização da forma: as imagens da exterioridade pura ou natureza, que a imaginação liga a uma idéia como sua representação; depois, o progresso da representação à forma do humano; finalmente, a sacralização ou destinação espiritual da arte que se torna veículo da manifestação religiosa, da idéia de Deus. Mas como o todo do momento da arte resta como o degrau inicial da interiorização absoluta, essa manifestação religiosa secundada pela arte é a do politeísmo, a que se liga a escultura antiga.
             O segundo movimento dialético abrange o progresso histórico dessa arte que se definiu por meio da realização escultural antiga. Os momentos são os da arte clássica na qual surge a escultura; da arte simbólica, que se tipifica pela arquitetura; e da romântica em que tornam mais conspícuas, progressivamente, a pintura, a música e a poesia.
            Na arte clássica trata-se da concretude da forma que, vista na imediatez, impede a consciência da oposição entre finito e infinito, individualidade e universalidade. Na arte simbólica, inversamente, trata-se do sublime, pois seu tema já é essa oposição mesma, expresso na busca incansável da adequação entre os termos ao mesmo tempo explicitamente contrapostos, o que Hegel exemplifica com o estilo gótico, onde a altura é o meio que impossibilida a concretude imediata, obrigando o olhar a percorrer, elevar-se até o cume, símbolo de Deus.
           Mas na arte romântica, que Deus pudesse ser pensado como estando no lugar materializado do cume parece uma ingenuidade (materialidade, exterioridade), sua expressão não devendo mais ser relacionada ao exterior, estando somente dentro do espírito, onde se manifesta a recepção do som, da cor, não, tampouco, como a recepção material de um suporte cromático ou sonoro, e sim como veículos daquilo que se realiza como recepção, isto é, de uma significação essencialmente poética. É na consciência do sujeito que a arte tem seu lugar e sua verdade.
            Entre a arte e a religião ocorre esse intervalo pelo que lá trata-se de uma ascese àquilo que aqui já se tem plenamente desde o início, pois a religião se instala na consciência subjetiva, na sua relação com Deus ou o Espírito. A religião é a manifestação do Espírito, mas enquanto efetividade, sua manifestação é a comunidade dos fiéis. Ora, é no cristianismo que a religião se torna absoluta. A manifestação do Espírito na forma da religião é revelação, e o cristianismo é a religião da revelação, portanto, o ponto de destinação de todas as formas religiosas anteriores: as formas naturalistas do Oriente e da magia, e as formas espiritualistas dos judeus, dos gregos e dos romanos.
          O que essas filosofias da história, da arte e da religião, mostram, é que, inversamente ao que poderia conduzir o método comparativo do seu estudo, nenhuma de suas manifestações é paralela à outra. Elas se encadeiam pelo fato de que existe uma verdade da arte, uma verdadeira religião. A hsitória da filosofia é o processo que conduz a essa compreensão, como saber absoluto que, conforme Bréhier, é o cristianismo mesmo, transposto do plano da representação ao do pensamento. Portanto, há também uma filosofia verdadeira.
          Bréhier conceitua essa teoria do espírito absoluto na corrente do tempo, pois descontando o misticismo, o que Hegel apresenta seria  o mesmo que o culto da humanidade em Comte. Aqui Bréhier está compreendendo o hegelianismo como um pensamento estritamente “moderno”, mas ao que parece o termo conota algo mais do que o período histórico iniciado por Descartes, sobreponível ao surgimento do Estado absolutista pós-renascimento. Pois assim ele está traçando uma linha de demarcação entre Hegel e “os outros filósofos alemães de inspiração mística”.
            Essa linha se traça expressamente pela busca da definição completa do humano, via ciências do espírito nascentes. Creio, portanto, que esse trecho algo enigmático com que Bréhier fecha a exposição sobre Hegel não significa que Hegel está, como um Schelling ou um Fichte, num novo momento em relação à mística alemã que seria tipificada por um Eckhart, de índole renascentista. Pois é esse lugar central reservado às ciências do espírito que permite propor Schelling e Fichte como um desses “outros filósofos” de inspiração mística dos quais Hegel se destaca.
            Na via mística alemã que seria tradicional procura-se incluir a humanidade na vida de Deus, como parte dela. Mas isso já na ruptura com o misticismo do Renascimento, que cultiva o panteísmo naturalista, conduz a um panteísmo da cultura, desde que se sobreponha esse apelo à definição do humano pelas ciências do espírito - ou é assim que isso tem sido habitualmente a apresentado.
        Mesmo que se pudesse supor que “panteísmo da cultura” é um termo adequado a Schelling, Fichte e os românticos, não importando nisso as suas divergências, a questão é que Bréhier pensa a teorização de Hegel como passível de se compreender amputando-se a via mística tradicional, mantendo-se apenas essa orientação das Geistewissenchaften, o que não parece uma característica extensível a eles. Não que Hegel não apresente as duas inspirações, mas sim que a via moderna do seu pensamento se traduz por essa independência virtual do misticismo, essa visão sócio-pragmática da religião, que o faz mais próximo de Comte.
          É interessante observar que o enigmático desse trecho – Bréhier não cita os nomes desses “outros filósofos” – deixa como que uma brecha para a abordagem do hegelianismo pela via da independência da forma. Mesmo assim a coerência da sua leitura se mantém no fechamento da totalização pelo conteúdo, já que, em todo caso, esse “moderno” que parece mais o “contemporâneo” se limita à proximidade a Comte, isto é, esse período que está entre o romantismo e o modernismo, no qual se exibe uma situação curiosa. Há as ciências do espírito, mas elas estão dentro de esquemas inteiramente comprometidos por uma espécie de filosofia do conhecimento que abrange a história, a matéria e a cultura num feixe contínuo onde não se opera mais do que uma demarcação linear, progressiva.
            Hegel opera nesse meio uma atração estranha. Pois o comum, como em Ampére e Comte, é que essa continuidade se assegure pelo eixo da natureza, universalizada como compreensão a partir da racionalidade positiva, empírica, a testabilidade e a verificação. Hegel a estabelece pelo pólo da Subjetividade como Espírito absoluto. Em todo o caso a imanência está votada pelo transcendental que é esse absoluto. Mas o irônico é o papel do humano, pois se não há forma vazia do dever ser, é somente no “espírito”, no sentido de “cultura”, que há devir do absoluto e sua concretização. Creio que é isso que influi na decisão de Bréhier em classificar o pensamento de Hegel como historicamente ulterior à via do misticismo romântico.
           Contudo, o resultado do hegelianismo é sempre uma recondução às formas mais conservadoras de sua época na consideração do fenômeno da cultura, como se costuma apresentá-lo, pois de fato a leitura dos valores de época se mostra sempre menos imediata na sua recuperação extemporânea. Assim, por exemplo, é lugar comum afirmar o medievalismo romântico como uma prova do seu passadismo ingênito, mas de fato, isso implica algo inteiramente oposto, como vimos, ao arraigamento do catolicismo contra a ciência empírica. O que estou designando "romantismo", do círculo de Iena a alguns tópicos bem referenciais do hegelianismo, não se antagonizava de forma alguma com a ciência empírica, mas se propunha pensá-la e por sua autonomia, transformar o conceito do que significa pensar. Por outro lado, o cristianismo bárbaro que esse medievalismo tematizava, não resulta num conceito unívoco de religião, mas em mesclas muito variadas de misticismo, em todo caso, voltado contra o cristianismo "dogmático".
          Liberado desse resultado conservador a que ou bem ele conduziu ou a ele foi atrelado, que em todo caso, como uma determinada valoração da cultura, ocorre pelo modo de arrumar o conteúdo, a forma do hegelianismo é bastante atual, recobrindo muitos temas importantes na progressão de várias vertentes específicas ao século XX.
            Chatelet começa por afirmar que a estética de Hegel se tornou a fonte dessas “filosofias da arte que pululam nos dias de hoje”, as quais, devido a esse predecessor tão ilustre só podem se esboçar como “quase sempre repetitivas” do que seria o seu modelo original. A novidade aqui é que Hegel introduziu a imanência da atividade artística. Ora, quanto ao que se fez dessa imanência – pois Hegel impede que dela se deduza as conseqüências que se apresentam progressivamente na via do modernismo – Chatelet adverte que devemos nos prevenir contra essas leituras aberrantes de Hegel, que alimentam especulações sobre o devir da cultura artística no sentido de uma história da arte filosoficamente orientada. O certo sendo apenas que ele considerou a arte como “coisa do passado”.
           Ou seja, Chatelet minimiza o caminho dialético que Hegel traça no interior das formas artísticas, para ater-se ao que considera extremamente positivo, isto é, o caminho dialético para fora da arte e da estética, rumo ao Estado e à política. Assim, ele põe como termo da exposição do percurso da arte à religião, ulteriormente a esta, o Estado, invertendo a ordem da preminência que já se deixa ver pela contraposição dos termos “objetivo” e “absoluto”. Ele explica: certo, existe a Filosofia como termo ulterior à religião, na especificidade dessa tríade espiritual conduzindo ao absoluto, mas que é esse Saber, senão o saber que a vida do Espírito é o Estado? Mas que é o Estado senão o político? Assim, o que Hegel apresenta como história da religião é apenas o material que servirá às reversões materialistas operadas por Feuerbach e Marx, conforme Chatelet.
       O anti-Hegel deleuziano e  mais geralmente pós-estrutural, se enunciou como transposição  da ênfase política à minoridade social, numa ruptura total com o modelo que seria agora designado estatal – positivo, à Hegel ou presentemente negativo, à Marx. Mas a forma como Hegel pensou o Estado, se seccionada da problemática do seu tempo a propósito dos regimes dados a pensar numa conjuntura de intenso conflito pelo trânsito das idades da nação moderna a contemporânea, e por uma teorização sócio-histórica ainda muito deficiente no tocante ao conhecimento da antiguidade e da democracia ateniense por aí sua concepção máxima de liberdade ser a monarquia constitucional, de fato só tematiza o vínculo público da sociedade, que está sendo permitido assim pensar numa problematização autônoma em relação ao sujeito, tanto mais seja pelo fato de que o Estado contemporâneo é aquele dos sujeitos livres.
           Esse vínculo exclusivamente público do social é sua ideia culturalmente presentificada enquanto singular, e é isso que vem a gerar a autonomia formal do Estado em relação à sociedade mesma.  Creio que isso permite criticar as negações do Estado que se fizeram recentemente por sua identificação ao totalitarismo. Num pensamento como o de Hegel, parece-me que se poderia afirmar que não há sociedade sem Estado. Além disso, seria falso supor  um nexo do Estado com uma unidade despótica, pois inversamenete, ele é o vínculo da multiplicidade social pensada irredutível à generalização do indivíduo.
            Hegel,  se opôs à idéia de um direito natural. A crítica de Hegel ao direito natural supõe a oposição que ele está instituindo entre natureza e cultura, no mesmo lance em que subsume o todo do real ao que reconceituou como racionalidade - mas lembrando que essa oposição não é feita como no rousseauísmo, e sim propondo-se antes o movimento dialético entre ambas.
         Ocorre, segundo Hegel,  que a natureza é o mais abstrato e o espírito só se realiza concretamente na cultura. Assim, ele se põe na contracorrente de qualquer interpretação do cultural na coextensividade com o natural, que facultaria algo como o positivismo.
               Aquilo em que teríamos que interpelar a relação da teorização de Hegel com o uno, em termos de Ideia, é o fato de que ele sempre lida no plano do conteúdo com a multiplicidade da cultura como algo subsumível a uma gradação, a uma escala de desenvolvimento, supondo algum horizonte de otimização do humano, a saber, o ocidente capitalista, cristão, das nações centrais, sua cultura, padrões de consumação, etc. Mas essa progressão é pensada na insistência de não se deixar de pensar a posição própria do pensamento enquanto o Saber da filsofia a propósito do que é Cultura, religiosidade, arte, sujeito.
         Essa, aliás, é  uma aporia de todo pensamento romântico envolvido com a posição histórica dos conteúdos das ciências do espírito, mas não se pode deduzir uma resolução comum, estrutural ao "romantismo", e inversamente, é a situação de cada pensador que será decisiva - por exemplo, se ele está situado na Europa ou na América, envolvido com a luta nacionalista na Alemanha, ou defendendo Napoleão como uma solução centrista do conflito de estamentos na França, objetivando culturalizar a aristocracia ou produzir uma teoria socialista da sociedade industrial.
       
                                                                                                      -------------


                        5 -   Subjetividade            
                                                                                            
            Hegel conceitua a essência do Espírito como ação. Mas inversamente ao tema heideggeriano da produção objetiva factual frente a que uma subjetividade se põe como igualmente objetivável para si, a ação está sendo pensada na problematização da história. O importante para o núcleo considerado em torno da subjetividade é que nesse trecho da Razão na História, em que examina o Curso da História do Mundo, Hegel está construindo a noção de Espírito como ponto da junção, ponto de unidade, do objetivo e do subjetivo:  da exterioridade, as formas institucionais da cultura;  e da interioridade como o foco originário da ação que plasmou essa realidade exterior.
           Assim, o “espírito” ou ação, não se separa de si mesmo, seja pensado num ou noutro desses pólos. No entanto, a efetividade dessa ação é a mais profunda des-juntura, por onde os temas do desejo e da alteridade, da formação da consciência subjetiva como de um sujeito capaz de valorar, portanto um sujeito no gozo da sua  liberdade, desde um indivíduo apenas capaz de sentir na região da necessidade.           Esse é o cerne da revolução que o pensamento de Hegel introduziu, e qualquer dos núcleos pelos quais se aproxime a sua filosofia, pode-se constatá-lo. O que faz a entrada de cada núcleo é justamente o modo como a des-juntura procede, isto é, seu ponto de des-junção daquela realidade que, previamente ao teorizar de Hegel, estava conceituada numa representação do entendimento, numa formalização, numa identidade abstrata.
            Assim, a entrada nesse núcleo de subjetividade pode ser proposta pelo foco da ação, naquilo em que, independente de se estar considerando do ponto de vista de um sujeito particular ou coletivo, trata-se sempre de uma unidade de sentido, “do” Espírito efetivado como vetor de uma ação processual, sempre localizada na sua recuperação conceitual, mas sempre ressituada como veículo da totalidade na sua enunciação racional. É sempre o sujeito, como o indivíduo que já não está pura ou materialmente “individualizado”, mas se fez “Espírito”, dotado, portanto dessa veiculação intencional na cultura, que consubstancia a ação, desencadeia o processo.
         Quando se trata de compreender a subjetividade do ponto de vista de uma psicologia, no interior do hegelianismo, é preciso compreender esse ponto inicial, pois ela se endereçou criticamente aos projetos que lhe foram contemporâneos, como os do kantismo ou do espiritualismo, que a empreenderam como uma ciência de fatos da consciência, conforme observa Bréhier, se bem que a meu ver não foi essa facticidade o caso de Maine de Biran. É do movimento do pensamento filosófico, da necessidade racional que, em todo caso, Hegel se vota a apreender, que se pode derivar, ou situar, as realidades psicológicas.
             Esse nexo de filosofia e psicologia se torna importante, porém, se compreendemos a torção que Hegel imprime na noção de teleologia. Jacques D'Hondt, em “Teleologia e Práxis na 'Lógica' de Hegel”, mostrou convenientemente esse ponto, ao traçar um paralelo de Hegel com Spinoza, em que se torna central o tema da ação. O humano é o lugar por excelência da ação teleologicamente orientada, transformando-se assim a concepção pela qual se costuma responsabilizar Spinoza, o que seria o conceito de uma teleologia natural. Criticando-a, Hegel insere uma concepção "certamente influcienciada pelo mito de Protágoras".
         Aqui devemos lembrar que Protágoras, por meio da figura de  Prometeu, demonstrou que tudo na natureza, inclusive nossos dons inatos, só nos podem servir convergindo numa ação intersubjetivamente concertada, pois o bem do homem, naquele sentido do seu vir a ser, é intersubjetividade histórica e culturalmente situada. 
          Em Protágoras, o que não havia, para se compreender a linguagem  como retórica, era a universalidade vazia que Sócrates procurava como à definição das coisas a priori, os valores humanos na sofística sendo mediatizados pelo acordo político. A socialização, em Hegel, é a concretude das pessoas, não há uma pessoalidade individualizada de fato,  ainda que o erro de supor-se essa substância individuada seja inevitável como as intuições primeiras. É só quando percorrido o caminho, compreendemos a intersubjetividade do desejo, que tal erro se corrige. em prol da concepção mais consoante ao real do desejo como intersubjetividade. Assim, conforme Marcel Regnier,  a "moralidade" em que se realiza a subjetividade em Hegel é "amor", o desejo sendo intersubjetividade.
          Hegel conceitua a finalidade como um processo racional, isto é, inteligentemente orientado, o que a define sempre no interior de uma ação, algo em profunda ruptura com as noções correntes na tradição filsoófica até ele, onde ação era somente o exercício intelectivo, não a ação na história onde o domínio empírico seria, inversamente, o das paixões. Assim, para Hegel não pode haver finalidade fora do contexto humano, na natureza, que iria subsumir o sentido do que o homem faz, mesmo que se pensasse essa exterioridade como a expressão da vontade ou mente de Deus. Hegel é bem explícito quando se trata de criticar o espinozismo, utilizando precisamente esse ponto de argumentação.
         Hondt articula o texto numa espécie de corte entre dois aspectos da teleologia do hegelianismo, pelo que, inicialmente se trata da imanência do conceito, para somente depois compreender o idealismo absoluto no qual se situa.
          A princípio essa finalidade só se apresenta na efetividade de uma realização, isto é, num processo local, num ato visando um fim. O ato teleológico se esquematiza por meio de um silogismo, em que o sujeito é o ser humano que age; o utensílio, coisa ou dado natural inerte é o meio termo; e a realidade externa que deve ser transformada pela ação do ser humano, é o outro extremo.
          A natureza, na pureza da sua vigência independente da ação do humano, ostenta um funcionamento mecânico, mas nunca uma finalidade. O ser humano, através da sua “astúcia” desvia esse funcionamento em seu proveito, precisamente dotando-lhe de uma finalidade – assim ele aproveita as forças do vento, da tendência, do peso, etc. e faz o moinho girar enquanto descansa.
            Mas ele poderia ficar preso na sua própria disposição, se esta apenas fosse um outro tipo de funcionamento. O utensílio, instrumentalizado pelo homem, se tornaria mais importante do que os produtos que permite efetivar, se o silogismo da ação ilustrasse apenas uma sociedade funcional, uma colméia. A astúcia do humano está em que ele inflige uma violência ao objeto, já que a finalidade vai ultrapassar o objeto, não poderá se confundir com ele.
            É interessante como nesse aspecto Hondt parece aproximar Hegel e Nietzsche, no momento mesmo de uma confrontação com Kant. Pois Kant já havia instituído a oposição, a antinomia insolúvel, entre finalidade e mecanismo. As leis mecânicas, isto é, naturais, são aquilo de que depende qualquer produção de coisas materiais, mas a produção não pode ser pensada como exclusivamente a partir das leis naturais, já que a natureza nada faz sozinha.
             Hegel se propõe resolver a antinomia, conforme Hondt, desfazendo a irredutibilidade com que Kant havia lidado, entre o fim e o meio. Uma constelação conceitual se emaranha assim conforme dois eixos teóricos, o de Kant e o de Hegel, ainda que Hegel tenha atribuído o fiat da sua teorização às tentativas de Kant para solução do problema. A bifurcação dos eixos está no modo de situar o dualismo, o antinômico kantiano e o dialético hegeliano.
          A margem dos fins, conforme Kant, subsume o ser humano, a liberdade, a moralidade e a produção. Está assim radicalmente distinta daquela dos meios, que compreende o mecanismo, a necessidade e a positividade, isto é, a factualidade seja de relações entre seres humanos, seja dos processos naturais.
Hegel procede por uma totalização do mecanicismo, no âmbito da natureza, que conduz a uma quase-finalidade por introduzir a noção de sistema natural, rede de causalidade que vai esclarecer-se na filosofia da natureza, mas por meio dos conhecimentos positivos que se entre-determinam uns aos outros.
       Ora, mesmo aqui, conforme mostra Hondt, Hegel está subvertendo o princípio da finalidade interna de Kant, que não poderia legitimamente ser aplicado à natureza. Pois ele pensa que a finalidade falhada no âmbito natural se compensa não apenas pela sua metaforização na totalidade, abrangendo ainda a conservação no âmbito do que seria o mecânico, na atividade animal que se permanece sempre a mesma, não deixa assim de, com isso, manter o vivo.
           Contudo, se a ação está processualmente racionalizada na forma silogística, seria lícito compreender todo processo localizado de quase-finalidade como um caso de finalidade em um nível superior, aquele que franqueia o limite do natural, já na abrangência do humano. Aqui a oposição meio-fim se torna dialética, pois quem quer o meio quer o fim, a ação inteligente não pode pretender colher sem plantar.
            O mundo deixa de ser o meio de um fim exterior, ele se torna o processo mesmo da interioridade enquanto teleologicamente orientado. A “finalidade interna” , conforme a expressão de Hondt, se torna um “imanentismo.  Hondt irá esclarecer, contudo, um segundo aspecto da teleologia de Hegel. Pois a duplicidade do afiado gume lógico-silogístico vai operar a des-juntura do Sujeito e do que Subjetiva, o agente e o nexo precisamente teleológico, “inteligente”, da sua ação.
              Na perspectiva do agente, e aqui poder-se-ia, conforme Hondt, localizar a sedução de Hegel, é o “Eu”, o sujeito, que concentra todo o mistério da atividade. O que o sujeito realiza, o trabalho, expressa a inversão da antinomia na dialética, o comprometimento dos meios pelo fim, mas também o sentido da falha da coisa, a reversão da totalidade na finalidade, pelo que o que o trabalho faz é apropriar-se, utilizar-se da coisa, transformá-la num escravo, dominá-la.
            Finalidade e dominação se tornam profundamente idênticas, e Hegel trata como instinto de conservação, “vontade de poder” conforme a interpretação de Hondt dessa rubrica de Nietzsche, qualquer exemplo dessa utilização: sobre coisas ou pessoas, escravos ou servos. Mas o corte entre os dois aspectos incide também aqui: as coisas permanecerão dominadas, os seres humanos dominados irão reconquistar sua liberdade, e isso, justamente por que são eles que se tornam os agentes do trabalho para o que foram, inicialmente, violentamente agenciados.
                Mas se isso parece a conclamação a transformar o mundo, ou uma filosofia contemporânea da subjetividade, como antepõe Hondt, é por que, por um lado, a limitação ao especulativo deve lidar com um mundo em permanente mudança provocada pela práxis do humano, mas também por que assim, é graças aos sujeitos humanos que a razão se realiza enquanto processualidade da ação. Ora, se essas reversões não chegam a mais do que parecer aquilo que só mais tarde se afirma efetivamente, observa Hondt, é por que a razão, o que se realiza, vai roubar a cena, por assim expressar, e subsumir o humano como caso do seu processo ativo.
              O mundo social, espiritual, a que o trabalho conduziu, o espírito objetivo, tornou-se a razão mesma que se utilizou do humano, isto é, do sujeito, simples suporte (trager) das relações da legalidade que expressam a realização da razão.
              A unidade do subjetivo e do objetivo, sendo ação, a des-juntura está nisso pelo que, aparentemente, teríamos a ação como foco sempre subjetivo, modelada por uma individualidade, pessoal ou coletiva. No entanto, a ação, como processo teleológico, implica tanto nessa polaridade do seu foco (juntura), sempre o sujeito da ação, como na transitividade do seu proceder, no seu desenvolvimento (des-juntura) .
             Essa duplicidade está tanto enunciada como explicação teórica do fenômeno localizado, sempre legível enquanto processo ativo, como abrange o alcance universal da teoria, pelo que o ponto de unidade é a realização do sentido. A idealidade do segundo aspecto da teleologia, pelo que a razão é que se torna o realizado e o referencial do processo, em vez do humano, poderia então ser visada como a expressão dessa unidade de des-juntura, pois não ocorre haver razão na exterioridade do mundo humano, cultura ou legalidade. Ou seja, em todo caso a realização teleológica poderá ser enunciada em termos de liberdade.
            Por isso o humano como foco da ação localizada e da realização da legalidade é ao mesmo tempo o que se ultrapassa e o que se realiza, não havendo contradição senão numa das formas de apresentação do tempo, o presente, enquanto que o que se revela como o nexo da racionalidade é o tempo em desenvolvimento.
           A teoria do espírito subjetivo deverá então esclarecer não tanto sobre o que é o ser humano na sua subjetividade em si, individualidade “livre”, objeto do que poderia ser uma psicologia pura. Mas sim como esse ser que se apresenta na forma mais exteriorizada como em si irredutível do humano aos outros e ao mundo, na verdade só se compreende no processo de sua interiorização ou efetivação nesse mundo e com os outros.
           Se do ponto de vista do conhecimento a consciência é a forma mais básica, do ponto de vista do espírito em si, o grau mais inferior é aquele pelo que ele se tem como algo natural, alma, receptividade pura a todos os fenômenos igualmente naturais: climas, tempos, estações, e suas gradações. A alma é coextensiva ao corpo, sendo também finita. Nesse grau mais inferior se apresentam apenas a sensação e o sentimento, como pólos respectivos da receptividade ao exterior e ao interior.
          O sentimento (Gefühl) é apenas a autopercepção (selbstschkeit) vaga de um Eu, espécie de estado crepuscular ou sombra da consciência. Hegel, a propósito desses dois tópicos, expressa desde a agitação do espírito, sem objeto, a sensação; até essa espécie de sonambulismo que é a autopercepção, no entanto, nem mesmo enunciando-se ainda em termos de pessoa. É somente o sentimento mais consistente do Eu, sentimento de si (Selbstgefuhl), que efetiva o pólo da individualidade como irredutibilidade ao universal.
          Esse sentimento de si permanece confuso e incoordenado, mas já está se encaminhando a realizar-se em termos de pessoalidade. Ora, é pelo hábito que a alma se libera desse nível mais básico e disperso, puramente sensitivo, para concentrá-lo como sua vida, sua realidade, podendo assim estender ligações com atividades superiores, isto é, não derivadas desse fundo de pura receptividade.
            Entre esse nível crepuscular, que Hegel designa “corporeidade do Espírito”, conforme Bréhier, e a consciência, não ocorre, contudo, uma continuidade, mas sim uma transposição de níveis. Certamente a consciência está se definindo numa correlação essencial com o Selbst, como auto-consciência. Mas o que torna essa relação consigo algo de consciente é ao mesmo tempo o fato de ser uma “certeza” e o elemento que funda qualquer coisa como “certo”. A consciência, portanto, não surge na região do sensitivo, mas do formal. Não no sensível, mas no âmbito da abstração.
         Assim a formalidade da consciência se auto-apreende pela exclusão desse nível “natural” que, como nas descrições do “Eu” empírico de Kant e Fichte, põe na exterioridade de si as coisas em si.
Com efeito, se a consciência é o nível mais modesto no processo de conhecimento, ela não está menos localizada nele, nesse terreno do inteligível.
           O que a limita nesse campo é apenas o fato de que a consciência só se produz como auto-consciência pelo processo de se pôr como uma coisa existente, uma exterioridade à própria apreensão, mas do ponto de vista formal, isto é, como pura existência irredutível.
           Isso que Hegel conceitua em termos de abstrato e formal é, portanto, o tipo de conhecimento que só tem como seu índice a apreensão de algo como coisa que força a uma experiência por parte do sujeito, mas ao mesmo tempo, que faz a imagem desse sujeito como uma existência irredutível, unidade de pura apreensão formalizante das coisas. 
           Desde que se trata de compreender a subjetividade em si aporta-se, da  obscuridade exterior ao inteligível, à consciência que, tão logo se atinge, dá lugar à descrição fenomenológica, articulando-se portanto, com a epistemologia e com a história, não tanto com a psicologia.
            Os estágios que conduzem desde essa auto-consciência abstrata ao Sujeito objetivamente situado, ou seja, intersubjetivamente constituído, são aqueles da consciência sensível (relação com o dado imediato), à percepção (dados relacionados e entrelaçados), entendimento (Verstand, apreende o que permanece sob a aparência das mudanças), consciência de si (auto-apreensão como indivíduo, egoidade que se põe em relação /ou confrontação com os outros) que desencadeia o processo do Reconhecimento, conduzindo à compreensão da objetividade como determinação fundamental da consciência, isto é, à Razão (Vernunft), assimilação da consciência como Universalidade.
          Pode-se observar como essa via limita o ponto de vista psicológico-subjetivo. O termo do processo, aquilo que se trata de compreender não é a Subjetividade e sim a Inter-subjetividade  - por isso, considero especialmente problemática a questão da "universalidade" em Hegel, o que poderia ser mais esclarecido se a aproximarmos do que no romantismo é a "ideia" produzida esteticamente, não a priori ou a-historicamente dada.
           Certo, aquilo a que se ascede é a Razão como universalidade, compreensão do transcendental pelo que a certeza evoluiu, desde a auto-posição, como forma vazia do “Eu”, até a posição objetiva das determinações da consciência, mas  como “determinações da esência das coisas” que são “seus próprios pensamentos”, conforme o texto da Enciclopédia. Porém, se é do ponto de vista do conhecimento que as coisas são assim, e conduzem portanto, exclusivamente ao Saber absoluto, a novidade "fenomenológica" - no sentido de Hegel, portanto, não no de Husserl - é que não há teoria sem prática, o especulativo tornou-se a articulação (histórica) da objetividade enquanto Espírito.
            No entanto, o que preserva o liame com a psicologia é a importância filosófica de que se reveste agora o processo da interiorização, pois ele não mais poderia se destinar exclusivamente nos termos de uma epistemologia pura. Trata-se do problema da interiorização dos dados da intuição, mas não como formação de uma consciência individual e sim da consciência do Sujeito, isto é, da formação do elo fundamental da cultura que não está mais num código do dever ser abstrato, e sim como a efetividade da subjetividade.
             É nesse ponto que intervém o momento do signo. Ora, a noção que está articulando essa guinada histórico-racional do idealismo é a Alteridade. A extrema originalidade de Hegel, e o que faz a sua influência na contemporaneidade, é o fato de ter inserido a alteridade do singo, no pensamento, de uma forma constitutiva.

                                                                                                                             ---------

        A exposição de Derrida sobre a teoria do signo de Hegel não deixa de acentuar essa transformação da filosofia, mostrando que sem dúvida Hegel  introduz  uma mudança na semiologia por ter deixado de considerá-la como “um resíduo”, e por aí também conceituado positivamente a transgressão - Ubersichhinausgehen (transgressão de si) – como necessária transitividade dialética. Mas a alteridade como intrínseca ao processo do real, a estruturalidade da Aufhebung se revela como a impossibilidade de pensar a alteridade na exterioridade do negativo, não captada como o vir a ser do Mesmo, pelo que Derrida localiza o “impensável”, o limite epistêmico da dialética de Hegel.
           Nesse texto Derrida estende esse limite a conceituações bem aceitas na atualidade, como a de Saussure, explicitando ainda que ele é imanente a vários setores no interior das ciências do humano. Seria, porém, um limite imanente a Hegel, ao que parece pelo comentário que fecha o texto, por que sua teoria do signo por mais que tenha inovado, não equacionou o trabalho do signo, a economia inconsciente do significante em termos da minimização do dispêndio de energia ou trabalho.
          No entanto, o trabalho do negativo em Hegel não me parece apenas a negatividade, por outro lado, sem dúvida essa questão toca o problema da "objetividade" como o que Derrida critica em termos do limite metafísico ocidental. Este universaliza a oposição, a universalidade seria o princípio de identidade como exclusão do terceiro termo entre dois lados de uma só alternativa quanto ao sim e não da identidade da coisa. Mas vimos que Hegel justamente se situa no ultrapassamento dessa concepção de objetividade.
            Aqui seria preciso intervir a influência oriental no Romantismo, com sua ênfase na entre-implicação dos contrários, como poderíamos inversamente a uma lógica identitária compreender o hegelianismo,  mas  creio que já temos elementos suficientes para ao menos orientar a questão num rumo menos simplista de leitura do pós-kantismo, que aqueles que o situam como apenas a repetição da estruturação metafísica, se essa estruturação deve responder, inversamente, por todo pensamento a-histórico do sujeito e da linguagem.
           O importante para compreender a originalidade de Hegel é acentuar que o Mesmo de que parte o movimento transgressivo à exterioridade de si, não se põe apenas como a totalidade racional, o Espírito, Subjetividade absoluta, mas a dialética fez intervir um ser-outro do mesmo na microtextura do real, pelo que, por exemplo, a Subjetividade do humano só pode se compreender como Inter-Subjetividade, relação constitutiva com o Outro que só se conceitua a partir de uma alterida  já instalada no desejo do sujeito ele-mesmo.
             Assim, como sublinhou Marcel Regnier, Deus enquanto conceito e absoluto, em Hegel, é trindade. "Este novo princípio é o eixo da história do mundo", conforme Hegel, porque por ele "o Um" permanece "completamente abstrato", e Deus só se torna concretamente pensável nesse estatuto quando, tornando-se três, vem a realizarem-se "como Pessoas". Essa é a liberdade conceituável do Estado moderno, como vimos, aqui onde todos são livres implicando que todos são pessoas, enquanto até então são indivíduos abstratos e abstraídos na única subjetividade do déspota ou da Polis.
               A história do mundo como realização do espírito não pode ser generalizada como percurso do único, o que nela se realiza em termos do humano/do absoluto é a convivência do múltiplo sem redução de sua multiplicidade não mais apenas generalizada nos termos de "necessidades" universais, mas a partir dessa base política constitucional,  também pensada como heterogeneidade.

                                                                                                              ----------               
            A leitura pós-estrutural de Hegel negligencia o essencial do seu pensamento, que é a inserção intersubjetiva do desejo. Assim, o que se realiza como Espírito é o histórico da multiplicidade de agentes humanos. A leitura pós-estruturalista de Hegel em particular e do Romantismo em geral, o reduz àquilo que ele estava criticando como à teoria do contrato social, isto é, toda filosofia pregressa como generalização do indivíduo onde a abstração era o objetivo formalizante do meramente intelectivo, em vez de espiritual. Inversamente, as teorias de inspiração psicanalítica instauram o desejo na redução ao individual, de modo que a terminologia da "diferença" não se mostra bastante para denotar "alteridade". Assim, por exemplo, o devir não-histórico deleuziano é o tornar-se a coisa mesma, o inconsciente lacaniano se expressa pelo mito despótico, etc. Por essa via psicanalítica ou pós-estrutural,  tudo a que se conduz é ao anal-capitalismo brutalizante travestido de natureza do desejo.
            Mas também a dedução althusseriana de que em Hegel não há o sujeito do processo histórico desde que reportado ao absoluto ou Espírito como oposto conceitualmente ao Homem, parece-me fugir inteiramente ao escopo hegeliano, Esse, inclusive, é um dos pontos que desencadeiam a mulitiplicidade de interpretações de Hegel, entre as quais o seu caráter libertário não seria apenas o que dele poderia ser transformado por um viés materialista. Pois, de fato, o Espírito só se realiza no pensado, em Hegel, e não há pensamento fora do humano pensante. Creio que este é o interesse dos hegelianos em desenvolver o tema da crítica a Spinoza movida por Hegel, a qual não consistiu na afirmação de que aquele filósofo não havia de fato conceituado o Absoluto, mas sim de que ele não apreendeu justamente a imanência como seu elemento, que seria a sua historicidade.  A meu ver, Althusser os confundiu, pensando que o Espírito hegeliano seria o mesmo que a Substância a-histórica de Spinoza.
         Conforme Hegel  em sua "Nota sobre Spinoza" citada por  Janicaud (dialética e substancialidade), o erro de Spinoza é que seus postulados substância, atributos, modos, são três elementos  que não tem nenhum desenvolvimento entre eles, ou seja, são apenas três identidades. Mas como não é possível de fato pensar sem desenvolver, sendo a extensão negação da primeira identidade, ou substância,  o modo como terceiro não é algo ulterior/outro,  e assim "a terceira [identidade] não é negação enquanto negação, o que significa que volta de si mesma e por si mesma à primeira" como se fosse à verdadeira.
            O que mostra bastante bem que Hegel pensa a alterização no tempo, não a mesmidade, pois não é uma identidade primeira o que porta o caráter de verdadeira identidade já que se transpôs o pensamento ao desenvolvimento e a identidade, como o que comporta a historicidade, pode então ser extensível a um conceito novo de pessoa como situamento  intersubjetivo, a pessoa enquanto agente de suas ações no mundo cultural e histórico.    
          Ainda que nenhum dos comentadores dessa coleção de textos sobre Derrida tenha notado, o romantismo em geral e Hegel em particular inauguram de fato o pensamento do sujeito no pensamento ocidental.
             Se aparentemente a transposição à subjetividade já havia sido anunciada com Descartes, este só se enunica como sujeito para suprimir a necessidade de pensar a subjetividade, o pensamento restando no âmbito, justamente, da substância que exaure, como a mente de Deus, o real a-histórico e a totalidade das ideias que são somente identidades em si. Assim, antes do século XIX, como se sabe, também não há inteligibilidade postulável para a Hístória como ciência.
           Ou é suposta elemento da paixão humana, portanto daquilo que não é conceituável; ou é abstraível, como em  Santo Agostinho, Vico e Kant, pela transposição do conteúdo a uma estória paralela que subsume os fatos como história da salvação, ciclo de barbárie-civilidade ou percurso ao cosmopolitismo universal.
           A tematização dos pós-kantianos "românticos" de pensadores que os precedem pode geralmente ser recuperada em termos de uma re-ecritura, pois eles estão conscientes dessa sua novidade, portanto, eles devem reler o passado da cultura como a um texto cuja chave não é dada nele mesmo, mas pelo que sabemos de sua inserção em algo mais que é duplamente a história - como aquilo que explica as lacunas do texto pelo seu desconhecimento, e como aquilo em que o texto presentemente se insere como a cultura desse conhecimento.
          Esse novo saber está, como não se deveria jamais abstrair, interpondo a biologia nascente, que transpôs o mundo de espécies fixas no rumo do transformismo. Essa transformação na imagem do real, pelo transformismo que já está explicitamente tematizado em Schelling por exemplo, foi antecedida pelas teorias do século XVIII que tentavam inserir alguma continuidade entre as espécies, devido ao acúmulo de conhecimentos ora de alguma interdependência de sua morfologia, ora da estabilização da árvore taxinômica que claramente situava a complexidade crescente dos organismos.
            Como Bréhier acentuou, os misticismos da época iluminista, inclusive Mesmer,  foram originais por coalescerem como interpretações dessa continuidade entre as espécies, mas ele não acentuou também, suficientemente, que o Romantismo no século XIX já interpela essas místicas de  um ponto de vista apto a julgá-las mais, não menos, "científicas" que os iluminismos racionalizantes dos filósofos do século anterior, porque os românticos já tem o transformismo cientificamente embasado ainda que não darwinista, portanto, a seu ver aqueles que contra a fixidez "identitária-objetiva", por assim expressar,  haviam investido na continuidade como um devir do espírito, provavam-se agora mais certos.
             Esse "eu" em devir do espírito revelando-se na natureza ela mesma, é o que impele o Romantismo a transformar todo o questionamento relativo à "alma", conhecimento e ser, no sentido da subjetividade que não se pode pensar na exterioridade de sua realidade orgânica por um lado, e cultural por outro, enquanto agente histórico e ser biológico. Como Maine de Biran e os críticos dos ideólogos iluministas costumavam apontar, estes sensualistas de fato abstraíam essa inserção real e orgânica da subjetividade, enquanto pugnavam por reduzir a  ideia a uma sensação que ela mesma era apenas abstraída como tal. Assim, eles "explicavam" por associação de ideias, o percurso do odor da rosa à ideia de rosa, mas não podiam com isso explicar como eles mesmos se diferenciavam da sua ideia de rosa.
            Por outro lado, a interpretação materialista- determinista-darwinista da evolução assinala a ruptura do século em relação ao romantismo, e a emergência do positivismo como um cenário em que o vínculo intrínseco de sujeito e história,  que os românticos variamente conceituam como sua tarefa mais importante, se substitui pela emergência da sociologia autônoma em relação à psicologia que volta a ser associacionista, tendo por objeto um sujeito de representação do mundo objetivo por meio de ideias produzidas como identidades, mas agora sujeito como individualidade psico-física que vai solver-se na psicologia do século XX ora pelo behaviorismo, ora pelo cognitivismo que não depende do seu a priori.
          Essa psicologia do século XX nasce numa ruptura com o dualismo que o indivíduo psico-físico do positivismo implica: por um lado, pesquisa da consciência ou representação objetiva  inclusive de si mesmo; por outro a fisiologia. Mas enquanto ruptura ela não chega a transbordar o quadro da cisão estrutural entre sociologia e psicologia, interposto desde o Realismo-Positivismo. Esse é um dos motivos pelos quais o Romantismo não se mostra a nossas concepções presentes facilmente recuperável, sempre mais tornando-se claro que as leituras ingênuas a seu propósito são anacronismos.
          Ele de fato pensa numa conjunção aquilo que nos é inacessível senão como as duas realidades antagônicas  de sistema e história. Não está assim assegurado que nós o possamos apreender senão muito aproximativamente, e mesmo assim, coagidos pelo fato de que na pós-modernidade é esse antagonismo de história e sistema, performatizado pelas teorias que foram axiais no percurso histórico desses dois séculos, aquilo que está problematizado porque essas teorias nada mais são hoje do que aqueles "grandes relatos" que desconstruímos.
          Esse situamento intersubjetivo hegeliano retroage, porém, do absoluto assim como pode ser conceituável desde que compreendemos o humano, ao ser do conceito em geral e portanto, a tudo o que é ação na natureza  (pensável). Como afirmou Regnier ("lógica e teo-lógica hegeliana") "por toda parte onde há tendência, atividade, no animal, no eu , no espírito, é a atividade do conceito que se exerce", pois sempre que a tendência é satisfeita, se traspõe a substancialidade isolada do que era ilusoriamente derinido, pela adequada conceitualidade do processo, supressão do isolamento de um e de outro, transposição do individual (subjetivo, nessa acepção ) no objetivo (interconexão do que age), que então vem a ser o absoluto ("sujeito"/conceito da ação). É por isso que na citação de Regnier, R. Kroner notou que a palavra conceito (Begriff)  é atribuida por Hegel num "sentido que ela não tinha nem podia ter em nenhum dos pensadores anteriores". Ninguém havia pensado sob essa mesma palavra, "o que ele pensa".
         Mas é assim também que  o objetivo de formalizar lógo-matematicamenteHegel, da parte de Dubarle, me parece de um vácuo completo. Como sublinhou Derrida ("O poço e a pirâmide"), Hegel pensa o cálculo na exterioridade do pensamento enquanto realização do selbst, de modo que segundo ele, se o pensamento voltasse ao cálculo após realizar-se nessa historicidade, tratar-se-ia de uma regressão, de uma infantilização ou impotência da filosofia.
           Aqui é importante notar, a meu ver,  que é recuperando o conceito de duplo como essencial ao pensamento romântico que podemos compreendê-lo como já inserindo uma crítica da redução do inconsciente ao uno - ainda que a exposição do assunto nesse ponto só pode ser referenciada constar no meu estudo sobre o Romantismo e os duplos. O desejo só é pensável na filosofia, conforme esse pós-kantismo, se o pensamento se situar na multiplicidade dos agentes historicamente engajados na sua processualidade, inversamente à generalização do indivíduo na sua abstração substancialista, ainda que todo o "discurso" do inconsciente tenha sido armado como se não fosse essa substancialidade o seu pensável.
           Esses pensadores do duplo como conceito de subjetividade mantém em comum a tarefa de conceituá-lo, mas de fato cada um o interpretou expressamente ao seu modo - por exemplo, em Schopenhauer ter um duplo é algo factual, explicável pelo karma que como devemos lembrar, em Schopenhauer explica o conteúdo da história que ele conceitua formalmente em termos de efeito da vontade ou noumeno. Em todo caso no Romantismo, o duplo deve ser pensável porque o sujeito está inserido por um vínculo intrínseco do si, da cultura definida como sistemas e códigos culturais, e da história, vínculo que como assinalei é estranho ao modo pelo qual desde o Realismo situam-se essas regiões temáticas. Sendo assim, porém, uma exposição a propósito da subjetividade em Hegel não poderia contornar a sua teorização do duplo.
            Já vimos que a duplicidade está sempre tematizada no seu pensamento, entre o que marquei como o relacional dialético de indivíduo e sujeito.  A extrusão como ilusão da substancialidade, torna o sujeito pensável do hegelianismo de fato o ex-cêntrico da temporalidade em que ele, contudo, está sempre (se) constituindo como agente histórico, pensante e auto-interpretante - por isso esse tempo de Hegel é espacializado, como inclusive notou Derrida ao afirmar que em Hegel, o tempo é o relevo, " a verdade, a essência (Wesen), como ser passado (Gewesesenheit) , do espaço".
         Mas Derrida não nota que a temporalização é essa duplicidade que não se reduz a um simples dualismo entre consciência e extensão. O movimento da antítese não é dado nunca de uma vez por todas, é nele que investimos o devir como história, não como temporalização abstrata da auto-apreensão "transcendental", pura ou apodítica, radicalmente independente da aexperiência, como seria o caso de Husserl que não obstante, foi de certo modo coagido a romper com essa premissa e pensar o mundo da vida que ele, ainda assim, nunca conseguiu situar como a questão da complexidade do histórico, conservando o tradicionalismo de "mundos" de cultura possíveis, definíveis no seu fechamento funcionalista. 
          O interessante a notar nesse ponto é que Derrida no citado artigo, viu precisamente isso, localizando a Entausserung como o outro do pensamento, "um outro que ele certamente suscitou que se lhe oporia em vistas a reapropiar-se (dele)", ou seja, como "estranhamento do próprio ato de pensar". Mas Derrida não observou suficientemente que isso envolve maximamente o tema do "criticismo" reconceituado pelos pós-kantianos de modo que, justamente, impede supor que eles tenham lidado com a abstração do significante. O que é dado ao pensamento como exterioridade radical,  não é, de fato, a Entausserung, mas os sistemas da cultura, as linguagens que não são mais imediatez, posto que não estão mais abstraíveis no seu conteúdo pelo universal do entendimento. Eis porque temos as ciências do espírito como estudos setorizados desses sistemas, assim definidos em Schelling e Schlegel.
         Mas o criticismo "superior" dos pós-kantianos critica ele mesmo o de Kant por ter se situado como mais um sistema. Ele tem que dar conta, portanto, de como o pensamento integra os sistemas, tem que ser "o cânon para todos os princípios e sistemas", na expressão de Schelling. Ora, na extremidade inversa da Entausserung como o que está antes, mas apenas está "para" e em todo caso deve formar as linguagens ( a si na cultura), está o pensamento realizado do Selbst que corresponde a essa formação praticada como percurso do sujeito na história efetiva do mundo.
             A duplicidade real está entre o ex-cêntrico da linguagem e o agente intramundano que no entanto, deve (não pode deixar de) em algum momento se conceituar a ele mesmo como essa agência. Assim, ex-cêntrico e sujeito realizado (histórico) modulam desse ponto de vista essencialmente romântico (Pós-kantiano) o que a princípio parece apenas a negação do indivíduo no sujeito da moralidade.
            Contrariamente ao desenvolvimento de Husserl e mesmo da hermenêutica de Heidegger, no Romantismo e muito claramente em Hegel, o interesse está no como (o histórico) da duplicidade. Em literatura romântica, o duplo é personificado por um outro desde que a realização que o sujeito tem que constatar ter sido a sua, desde o que ele não era ao que ele investe e integra, de fato não realizou mais que o estereótipo (o estudante ambicioso, o adúltero ingênuo, o funcionário invejoso) em vez de ter-se tornado o operante de sua liberdade na linguagem. Em caso algum, porém,  o duplo no romantismo é apresentado como o que deve ser negado pelo sujeito para reconquistar essa liberdade. Inversamente, ele é a verdade que o sujeito não pode deixar de confrontar de si mesmo como realidade agente na história.
           Afirmar a duplicidade é aceitar a alteridade do signo, mas essa é a verdade que liberta sendo a assunção de nós mesmos como atuantes das transformações na história que conduzirão à liberdade socialmente efetivada, não como pensava Lacan, o que seria a mensagem da dialética do senhor e do escravo hegeliana nos termos de que todos são escravos. É assim que "cristianismo" no romantismo é algo que está ainda por se compreender. Hegel não foi muito influente como teólogo, e sim como pensador político. A palavra de sua filosofia, de fato, não é "religião", e sim "liberdade".
           É notável como Lacan esclarece suficientemente a razão da desleitura pós-estrutural de Hegel. Ao definir a psicanálise como uma dialética, no seminário inicial a propósito de "os escritos técnicos de Freud", ele demarcou no entanto o saber absoluto em Hegel como "momento em que a totalidade do discurso se fecha sobre si mesma numa não-contradição perfeita", e então o ironiza "Daqui a que nós tenhamos chegado a este ideal!" (pag.301), pois de fato por discurso o que se define logo no parágrafo seguinte são os "sistemas simbólicos que ordenam as ações, os sistemas religioso, jurídico, científico e político", mas não havendo "superposição, nem conjunção dessas referências" que configuram assim  sistemas perfeitamente autônomos.
          Por um lado, para Lacan, trata-se das contradiçãoes não solvíveis entre essas ordens simbólicas que estão mutuamente em luta. Mas também (pag. 317), se "a psicanálise é uma dialética" , ela é ainda o que Montaigne chamou "uma arte de conferir" como a de Sócrates, isto é, arte de "ensinar o escravo a dar seu verdadeiro sentido à sua própria palavra". Ao que se ajunta "E essa arte é a mesma em Hegel".
           Ora, como vimos, o romantismo definiu precisamente esses sistemas como objeto de estudo das ciências do espírito, mas quanto à sua teoria da subjetividade, especialmente em Hegel se expressa que seu problema é o investimento ativo do espírito de modo que todos os escravos serão livres, se eles são humanos, não coisas. Há uma concepção do pensamento como desenvolvimento inevitável cujo movimento é necessariamente liberdade, aquilo que o espírito enquanto esse sujeito inalienável e histórico, na sua singularidade existencial, produziu relativamente ao que ele investiu. O movimento pode ser recusado pelo sujeito que se atém à estereotipagem do sistema, mas essa mesma abstanção coisificante de si é um fenômeno histórico. O movimento do pensamento não é apenas interioridade sem ser intersubjetividade e transformação histórica de mundo. Ou seja, o pensamento é político, nós não somos escravos essencialmente.
           A modernidade começa, como Romantismo, por interpretar o mundo industrial como um processo de sentido cuja propulsão é liberdade, lembrando que também o direito está se transformando nessa época em que todo o conflito histórico se relaciona a obter a transposição do direito estamental, onde o sujeito responde à lei do seu estamento, em direito liberal em que o sujeito responde a  uma lei nacional baseada em direitos humanos e responde apenas por si mesmo enquanto pessoa responsável pelos seus atos. Essa lei nacional é portanto, também uma luta contra o direito "imperial" supranacional - prussiano ou napoleônico, e na margem colonial,  metropolitano -  que implica uma lei indiferente aos valores, língua e cultura, do povo sujeito do direito em uso.
            A subjetividade só é pensável no ocidente quando ele mesmo está se pondo como uma centralidade geopolítica frente a margens culturalmente autônomas que no entanto estão a ele relacionadas pelo laço da historicidade que as constituiu nessa enformação pós-colonial, e pelo situamento liberal da economia industrial como um mercado internacional.
            Lacan pensou, ao submeter a paciente que rotulou "chatter" - porque impossível de ser reconduzida da parole ao discurso - que se essa impossibilidade implicava sua infantilidade, quanto ao ser "situado no mundo dos adultos" que ela estaria assim sintomaticamente recusando, se definiria por um mundo "em que sempre se está mais ou menos reduzido à escravidão" (pag. 262), isso como num corolário desse trecho iniciado por uma reflexão sobre as relações de senhor e escravo em Hegel.
               Seguir-se-ia essa escravidão essencial do humano, se todo o conceito se tornasse apropriado pela concreção dos sistemas tendo como alternativa a ipseidade da auto-consciência transcendental. Ou seja, conforme a disjunção de história e sistema, estruturante da reapropriação do liberalismo pelo capitalismo como um processo de sujeição-alienação do ser humano,  esses temos sujeito/alteridade se tornaram ressignificados como uma negatividade cujo caráter contrapositivo não contempla o situamento específico em que o Romantismo, como anterior ao imperialismo mas posterior à solvência do antigo regime, se coloca inclusive como um Socialismo. Até mesmo Brehier critica o epíteto utópico para esses movimentos socialistas ante-marxistas.
            Assim, há dois tópicos relacionados que só estudos especialmente voltados ao propósito de desenvolvê-los poderiam se mostrar relevantes. Inicialmente, a imbricação dessa formação geopolítica do ocidente imbricada à assimetria internacional do capital que define para seus efeitos, centro e margens. A leitura edipiana do inconsciente como destinação anal da oralidade poderia assim inserir-se numa história do pós-romantismo como discursivização recentrante da teoria implicada no devir imperialista do ocidente como momentos diferenciados em termos de expressão, do que se verifica como as várias fases históricas da dominação de margens. Mas igualmente importante seria o tópico do contraste entre a teoria da subjetividade ou do duplo, em Hegel, e os demais encaminhamentos dos pensadores românticos.
          Há efetivamente uma crítica movida a Hegel, por exemplo em Schelling, assim como de Hegel aos "românticos", o conflito estando relacionado ao fato de Hegel ter situado o duplo, o histórico, o absoluto como razão subjetivada, em termos de Saber, objetividade absoluta, quando para eles era importante preservar  a decalagem do realizado - e assim a ideia realizada na obra de arte como figuração da realização do sujeito romanesco é hieróglifo, algo a evocar e ser decifrado apenas como atuação poética numa recepção, em vez de objetividade. Como assinalei, há o problema da posição transicional de Hegel postulada por alguns, entre romantismo e realismo, a meu ver muito devido a isso. No entanto, se Hegel permanece um pensador da duplicidade, ele não é ainda um realista ou positivista e deve permanecer relacionado à problemática situada como entorno romântico.
           Como esses dois tópicos seriam excessivos a nossos propósitos presentes, que se mantém como delineamento exclusivo do pensamento hegeliano, torna-se mais oportuno registrar que a noção pós-kantiana de criticismo se comunicou à estética do século XIX porque ela é a interpelação da produção artística que já não pode abstrair a multiplicidade de suas linguagens e estilos ("sistemas") mas como teoria estética, ela então precisa situar-se num ponto de vista que os abranja e apreenda na conjunção de sua tarefa de conceituar a arte, não pode confundir-se como a poética de qualquer deles. O termo inglês "criticism", traduzindo tanto "crítica" quanto "criticismo", usado para essa teoria estética, de fato se pode rastrear significando o segundo aspecto em vários escritos importantes, de Poe a Henry James, designando um cenário específico do pensamento de arte expressamente atribuído desencadear-se com os Schlegel e os críticos românticos.
           Quando nos aproximamos do que se conceitua por meio do duplo romântico, vemos que não há o pensamento da multiplicidade não reduzida ao uno-sistêmico, na psicanálise ou pós-estruturalismo. Inversamente, conforme Koyré, a filosofia da história em  Hegel não permite totalizá-la, pois se ela é conceituada como Espírito, Deus ou Conceito, o papel criador da antítese sendo a alterização situante da multiplicidade dos agentes humanos no real, "a síntese é imprevisível", não se pode construí-la (formalmente), só podemos conceituar o que até aqui já foi cumprido. Portanto, também a leitura pós-estruturalista da antítese como reposição do Mesmo não tem sentido senão como leitura anacrônica do pós-kantismo.
          A forma transitivo-transgressiva do devir é o que conceitua a alteridade em Hegel, mas com isso o que ocorre é o situamento do Outro, uma vez que o que se transgride é a auto-ilusão da individualidade. A negação de si no desejo é na verdade ironia. Não há o si que se negou, mas sempre se esteve no horizonte do múltiplo. Conforme Derrida, porém, sempre que ocorre o processo dialético, o momento da alteridade é a transgressão, logo, o processo só ocorre no rumo do Apagamento da transgressão, o que se logra precisamente pelo situamento na forma da transitividade relevada, isto é, sobreposta pelo retorno do Mesmo na síntese. Mas aqui teríamos que notar que o que retorna na síntese não é um mesmo do desejo antes-do-outro.
               A questão do relevo, como operação eminentemente metafísica, quanto a Hegel, seria então se o que a negação nega é a mesmidade do mesmo ou o outro - eu creio que é o desejo como mesmidade do objeto, entendendo a síntese como a afirmação da alteridade do desejo. Assim, o caso falhado da síntese é a impossibilidadedessa afirmação  pensada por Hegel  no caso da recorrente proscrição dos judeus. Impossível a sintese, a afirmação do desejo da alteridade, enquanto não houvesse meio termo cultural - correspondendo ao desejo de haver - que conciliasse o judeu e o europeu.
              Lyotard interpretou isso como se Hegel estivesse dizendo que seria preciso que o judeu se negasse enquanto judeu, mas não me parece que essa interpretação seja inquestionável como apenas o velho adágio cristão da conversão. A síntese em Hegel é histórica, institucional, como o haver de uma linguagem ao mesmo tempo comum e heterogênea como os românticos pensavam a evolução da agregação dos bárbaros na europa. Se  Hegel inovou realmente, pelo que só ele enunciou o Ser-Outro do Mesmo, há necessidade de reler o romantismo e sua filosofia sem comprometer-se com a censura positivista, mas também sem reduzí-lo à fenomenologia do século XX, utilizando-o meramente como meio de criticar algo que não corresponde à sua problemática da alteridade.
 


        6) Linguagem
    
             A subjetividade não se define como uma forma de mesmidade mas pela sua transitividade processual.  O movimento em devir ou temporalidade se torna a formação do sujeito, pois é por ela que se dá a ultrapassagem da transgressão sensível, das necessárias ilusões da natureza e do em si do indivíduo,  à gênese do Espírito naquilo que ele é, seu retorno a si. Essa concepção de uma temporalidade do retorno, enquanto algo que interpõe o devir do sujeito na história, em vez de no apodítico da consciência cartesiana, é o que deveria ser desenvolvido numa problematização mais atual da filosofia de Hegel.
         Para Derrida, nela o signo corresponde a esse movimento, mas que ele interpreta como sendo de sublimação da natureza, pelo que o Espírito se põe perante ele mesmo: as coisas são agora seus estados, não mais coisas nelas mesmas, sem deixar de ser o que são, inversamente, tornando-se assim, exclusivamente, o que podem ser.
          Derrida mostra que a teoria hegeliana do espírito subjetivo intercepta antropologia, fenomenologia e psicologia, conforme, respectivamente, é considerado: a) em si ou imediato, como alma ou espírito natural; b) para si ou mediatizado, como alma, reflexão, particularização ou relação com o “outro”; c) determinando-se como sujeito, em si e para si mesmo.
           Podemos observar como o uso do termo antropologia está historicamente situado, pois aquilo que estudamos na rubrica “subjetividade”, enquanto teoria da alma, que se considera comumente parte da psicologia, está no contexto de Hegel designado como antropologia, “estudo do homem na natureza”.
            Ora, a semiologia forma um capítulo da psicologia definida como ciência do espírito determinado como sujeito, em si e para si, o que, nota Derrida, impede que seja considerada na fenomenologia. O estudo do signo se torna algo relativo à interiorização formadora da subjetividade, não o processo da legalidade e do Saber. Mas de uma subjetividade que se forma na destinação ao Inter-subjetivo constituído como legalidade e Saber.
            O importante aqui é rastrear a gênese dessa teoria do signo, pelo que Derrida enfatiza que Hegel repõe a conceituação de Aristóteles que o conceitua como estado da alma, pathemmata psychês. A determinação da universalidade articulada com o mais íntimo da subjetividade se produz nesse ponto, conforme Derrida, pelo que Aristóteles observa a comunidade daquilo de que os signos são expressões. Os estados da alma são comuns, idênticos, a todos, assim como também as coisas de que esses estados são imagem.
           Os pathemmata não são, portanto, nesse nível mais elementar da semiótica, Sttimung, conforme a expressão cara a Emil Steiger, essas inclinações ou disposições da alma que formam a poesia lírica, mas muito prosaicamente, as impressões que a alma recebe dos objetos dos sentidos.
O que Derrida observa, quanto a isso, é que Hegel, considerado “o instituidor do primeiro grande projeto de semiologia geral e científica, modelo de tantas ciências modernas e humanas” , conforme o texto O poço e a pirâmide, ao instituir a semiologia como capítulo da psicologia não faz mais do que preservar “esta necessidade que é propriamente metafísica”, presente também em Saussure e Hjelmslev, a saber, o vínculo do signo com a expressão de estados subjetivos.
           Mas como já notamos, a propósito destes estados Hegel não poderia ter a mesma perspectiva de Aristóteles, para quem a história era menos verdadeira que a poesia, não porque a história não fosse de fatos, mas porque esses fatos eram fortuitos, não manifestavam a idealidade tal como Aristóteles a concebia, a distribuição das posições sociais fixas, objetivas, dos sujeitos,  a que se relacionaria a exemplaridade do correlato anímico-significado.
             Para apreender os estados subjetivos no pensamento hegeliano, inversamente, teríamos que fazer intervir a antítese como o que se interpõe entre essa idealidade significada imediata para o sujeito, e aquela em que ele se produz historicamente uma ideia de si para si por meio do movimento em que introduz na história a sua ação. O essencial da subjetividade é precisamente que toda distribuição fixa de papeis que lhe é dada, é primeiro preciso que seja recebida, mas logo depois se torna objeto de sua estranheza, do seu não-ser ainda o sujeito mas tão somente o papel. Esse intervalo é impossível ser pensado na metafísica. A síntese é então produzida pelo sujeito como sua ação na solução dessa tensão. Por isso é ela mesma signo (ideia), não se dá na interioridade sem também realizar-se na história, isto é, numa instituição ou linguagem.
             A perspectiva dialética de Hegel, para Derrida, compreende o signo conforme o movimento de suprasunção da natureza, o que implica ao mesmo tempo superação e retenção, conservação daquilo que se superou. Ora, a psicologia é a ciência que considera a atividade do espírito enquanto tal, isto é, enquanto essa destinação teleológico-racional que abarcou, processualmente, a supressão e a conservação. Entram na psicologia, portanto, a intuição, a representação, a recordação, os desejos, etc. , como articulações de um movimento organizado e orientado.
             Lembrando que a juntura se faz pela focalização sempre subjetiva do vetor da atividade, Hegel considera todas as “faculdades da alma” na unidade, ou “soldadura”, conforme Derrida, desse movimento. A semiologia aí se localiza como uma parte da teoria da imaginação.
              A representação (Vorstellung) consiste numa intuição interiorizada. A intuição apreende a imediatez sensível, mas a inteligência representa o que intui, isto é, ela não apreende o dado sem, ao mesmo tempo, se colocar a si mesma como tendo a intuição de si mesma. A exterioridade só se coa pelo filtro da interioridade. Os termos de Hegel, porém, não são esses, especialmente ele é crítico do termo "representação". Como Derrida mesmo acentua,  Hegel pensa que é a própria interioridade do dado, enquanto captado, vivido, que precisa ser aufgehobene, suprassumida pela inteligência, para que esta se torne o que é como exterioridade, isto é, como um nomear objetivo da coisa e de si mesmo como o que nomeia.  Derrida o interpreta porém, como se a representação fosse ao mesmo tempo rememoração- interiorização (Erinnerung) da intuição. Não creio que o movimento do conceito seja rememorativo ao modo da fixação de um dado,  mas sim como já assinalei, antes da síntese o que há é a duplicidade do que é posto ao sujeito como imediatez e a compreensão do sujeito de que essa imediatez é ou tem que ser deslocada por ele no movimento de investir sua realidade em vez de apenas deixar a coisa ir, da árvore deixar os sentidos transitarem à casa, desta a mais alguma coisa, etc.  É por isso que a síntese não vai corresponder à ideia aristotélica, totalmente desembaraçada do sujeito como do seu devir, mas bem inversamente, à ideia em que o sujeito não pode não se pensar producente, daí a rejeição de Hegel à concepção de que a matemática pudesse formalizar esse estatuto da ideia.
                   Conforme Derrida, na teoria do signo Hegel estabeleceu ser a Erinnerung que opera a transição do simples conteúdo sensível da intuição ao seu Status de imagem, isto é, já despoluída do singular, de toda imediatez, para poder destinar-se conceitualmente. Ela forma com essas imagens, à serviço da inteligência, uma espécie de reservatório (Vorrat) inconsciente que já não são do que está “lá”, mas do que se conservou por esse viés representado, figurado, aqui intervindo as metáforas do poço noturno (nachtliche Schacht) ou inconsciente (bewusstlose Schacht ) e do veio no fundo da mina.
             Nesse caso, creio que seria da máxima importância indagar do estatuto da imagem em Hegel, se ela é ou não correspondente ao que o associacionismo preconizava como o que se interpõe entre a percepção e a compreensão, ou se ela é o que mais tarde o simbolismo vai tematizar pelo termo místico  "analogia", o que a meu ver na teoria atual seria aproximável ao estatuto do imaginário. Como sabemos que Baudelaire atribui essa teoria do símbolo aos românticos, pode ser que tenhamos aqui um meio para demonstrar a irredutibilidade do pensamento do eu romântico à facticidade da auto-apreensão do si.
          Na analogia ou doutrina das correspondências, como regra da produção poética que se supõe mística por proceder do mesmo modo que procede o espírito na sua liberdade em relação não à matéria, mas à coerção das disciplinas do raciocínio que aqui estou designando intelectivas, toda imagem ressoa possivelmente com qualquer imagem - uma cor a um perfume a uma paisagem e a uma pessoa, etc. - sob o laço de alguma semelhança apenas significante, esse ressoar sendo, contudo, gerador de linguagem, um sintagma espiritual.
                Em todo caso, conforme Derrida, o tesouro oculto desse reservatório se mostra sempre resgatável, pois a inteligência não precisa mais do que mudar o foco da intuição, do exterior ao interior, para recuperar o que possui, evocar o que apreendeu, processo que Hegel designa imaginação reprodutiva, que transfere a proveniência das imagens à interioridade do “Eu”, podendo assim, para conservar o viés metafórico, a qualquer momento fazer vir da noite à plena luz.
               A inteligência se tornou, nisso que para Derrida seria a representação, algo mais do que a consciência ou a presença, mas aquilo que relaciona preservando, de dentro, isto é, o sujeito, o em-si dessas determinações. Ora, feita a reserva de imagens, a inteligência continua a operar naquilo que recorda, reproduz ou interioriza, o que se constitui como imagem da inteligência mesma que se produz como Fantasia, “imaginação simbolizante, alegorizante, poetisante”, conforme Derrida.
             Essas formações da fantasia permanecem “reprodutivas”, porém, segundo ele, porque são sínteses sobre dados intuitivos, recepções passivas do exterior, o conteúdo dado (gefundene) ou encontrado (gegebene) da intuição.
            Já na imaginação produtora o limite da passividade é contornado, pois a intuição imediata torna-se ente produzido no mundo, o Signo, resultado de uma produção fantástica, imaginação-que-se-faz-signo (Zeichen machende Phantasie). A inteligência, conforme Hegel, se apropria daquilo que encontra em si determinando-o ao mesmo tempo como universal, isto é, conforme a razão como ente sígnico, suporte inteligível de significado, expressão ou manifestação de um conteúdo interior que, como sublinha Derrida, paradoxalmente, ou melhor, muito ambiguamente deriva de uma produção de intuições.
             Mas aqui, em vez de destacar esse caráter verdadeiramente escandaloso do produzido no espírito, quanto ao próprio significado, ele faz intervir o paralelo do signo em Hegel com o esquematismo kantiano. Derrida conceitua esse paralelo como ilustração da relação não conflituosa de Hegel com o kantismo. Assim como o esquematismo transcendental, a imaginação produtora do hegelianismo seria uma espécie de arte natural, movimento de temporalização entre o sensível e o inteligível, o passivo e o ativo, o exterior e o interior, o outro e o mesmo, todas essas convergências pertencendo como qualificações ao Signo, Mittelpunkt (ponto do meio) lugar de transição dos opostos - quando até aqui o signo hegeliano havia sido estipulado por Derrida como desde o início deslocado em relação à natureza.
          Lugar da Fantasia, a convergência mais importante assegurada aqui, a meu ver, é entre o ser e o universal, isto é, entre o dado singular que se apreende e o caráter semiótico que o empreende no processo da significação, pelo que o Ser se transpõe, pelo signo, em universal, isto é, já não ocorre que coisa alguma possa ser na exterioridade do processo que confere a sua determinação positiva-subjetiva.
          Mas esse lugar ambíguo da fantasia é também o de uma exterioridade com relação à Verdade. O signo permanece forma, antes da atividade que o trans-forma no Saber. Por isso, para Derrida a novidade
escandalosa do hegelismo, afirmando a fantasia como razão, é apenas aparente, pois ela é razão apenas como unificação dos trabalhos da oficina interior (innere Werkstatte) que produz signos, mas essa razão é formal, não a Razão que inclui o conteúdo em vista da Verdade. A novidade que permanece, como vimos, é a inclusão desse momento da semiose – da imaginação criadora – na caracterização da racionalidade, mas como observa Derrida, o que se deve interrogar aqui é o intervalo do signo e da verdade. Por que é assim a relação entre ambos?
        Ora, é nesse ponto que me parece residir o problema da interpretação derridiana, uma vez que o que deveria se colocar é a questão da verdade em Hegel, justamente enquanto ultrapassamento do formal, com isso instalando em cheio um questionamento que é o mais recorrente do pós-modernismo literário, a propósito da relação da instituição infixada do signo, e a corrência variável das linguagens onde o que varia é  a apreensão da subjetividade enunciativa. Mas Derrida, em vez dessa questão da verdade, inerpõe que a interrogação sobre a relação de forma e conteúdo em Hegel tem que ser dupla, ao mesmo tempo envolvendo o ser da metafísica, logo, de uma certa caracterização da Verdade, e do signo. Ele já pressupõe, portanto, que o exame transcorre sobre um registro da tradição metafísica ocidental cuja estruturação foi dada de uma vez por todas no platonismo.
           Mas a interrogação se desenvolve no texto derridiano interceptando ao mesmo tempo o porque da metafísica estar agora incluindo o signo, e o porque dessa inclusão continuar paradoxal. Logo, interrogando o nexo de toda metafísica com uma certa conceituação de signo como déficit de Verdade, e do hegelianismo, última fulguração metafísica, com a noção do signo como progresso em vista (tanto destinando-se como na presença ) da Verdade.
           Estando a verdade numa relação fundamental com a experiência, e esta um caso do signo, o signo continua a ser metafisicamente interpretado como inferior à verdade. Mas seria o signo na sua materialidade essa diferença em relação ao objeto (significado) ou ao sujeito, no pensamento hegeliano? Essa a questão importante que até aqui não se expressou. Assim, como observa Derrida, este “porque” de haver decalagem já não se deixa traduzir como “o que isso significa”. Ou seja, já não se interroga o que significa o significado, mas como é que que poderia ele não significar, ou seja: como é possível a metafísica? Parece-me que nesse momento do texto Derrida toma posição, também, com relação a Heidegger, pois ele não apenas reproduz o movimento de perguntar sobre o ser de.
         O jogo do signo hegeliano é complexo, na apreensão de Derrida, pois não ocorre apenas uma relação direta entre algo que se dá a ver e algo que se dá a significar. Inicialmente é preciso compreender a atuação da fantasia, pelo que, estando ligada à representação - na verdade, à interiorização -  por meio do signo ela agora cria intuições.
          O signo suscita a experiência da sua recepção, por assim expressar. Mas essa espécie de intuição comporta características especiais com relação à captação comum dos dados dos sentidos - vimos que ele fixa, enquanto a captação flui. Ora, o signo é também algo dado, devendo ser representado. Contudo, o que se representa na intuição do signo é a representação de uma representação, de uma idealidade conceitual, Bedeutung, isto é, uma Significação.
           A questão se torna a relação entre a significação transportada pelo signo como correlata a um querer expressar, e aquilo que transporta o signo, o significante, seu suporte material. Repõe-se com Hegel, conforme Derrida, uma longa continuidade teórica que desde Platão, investindo a arbitrariedade dos nomes como o Hermógenes do Crátilo, até Husserl, aproxima o significante à carne e ao corpo, o significado, à alma. Husserl chega a nomear a palavra viva, isto é, o signo que reúne significante e significado, como geistige Leiblichkeit , uma carne espiritual.
             O poço conduz à pirâmide porque, conforme o movimento metafórico do texto de Derrida, nesta continuidade teórica a materialidade do significante está para a significação assim como a pirâmide está para a alma, como um invólucro que lhe é perfeitamente estranho, assinalando-lhe a finitude. Mas Hegel utiliza o termo pirâmide para designar o significante da significação, ao mesmo tempo a operação semiótica e a sua opacidade à verdade. A proveniência da metáfora não é arbitrária, pois Hegel irá se engajar numa explicação histórica da escrita na qual, pelo viés dessa aproximação à carne e à alma, se deverá verificar a superioridade da escrita alfabética, implicando a crítica do procedimento hieroglífico como do “estágio” da espiritualidade egípcia.
           A operação de significação descrita por Hegel como “o erguer da pirâmide”, conforme a expressão de Derrida, comporta a identificação do signo com a intuição que o produz como o querer expressar fantasiado da imagem. Ora, o que se vê no signo é a ausência do que a expressão fantasiou sobre o que a imaginação guardou, ausência do “lá” da coisa que é significada, mas por isso mesmo, não dada na plenitude da intuição que a evoca.
           Atualmente a semiótica observa uma classificação básica dos signos: o ícone é a imagem idêntica da coisa, como a estátua em relação ao modelo; o índice é a sugestão da semelhança da coisa pelo seu efeito, como a fumaça em relação ao fogo; o símbolo é arbitrário em relação ao modelo, como a palavra nada tem de análogo à coisa que significa. Hegel não utiliza a terminologia dessa classificação atual, mas conserva o seu sentido que separa o motivado e o arbitrário. Assim ele nomeia apenas a irredutibilidade entre o signo que guarda alguma semelhança com o referente e o signo que não o faz. Àquele designa “símbolo”, a este, propriamente, “signo” - invertendo as palavras que normalmente usamos para designar esses dois referentes.
            Essa arbitrariedade é o que permite esclarecer sobre a propriedade da semiologia como capítulo da psicologia, no hegelianismo, conforme Derrida. Vimos que Hegel não pensa a psicologia na imanência do individual, mas do Sujeito. Assim, se ela é a ciência do espírito que se determina em si, como sujeito para si, demarca o momento em que “o espírito não tem mais do que realizar o conceito de sua liberdade”. No símbolo (motivado, cópia da coisa) ainda se guarda alguma relação com a necessidade, com a natureza, enquanto Arbítrio e Liberdade estão o mais estreitamente unidos no signo (arbitrário). Relação com a necessidade é ao espírito um tipo de exílio, o elemento da liberdade somente podendo ser o estar ele na interioridade dele mesmo, isto é, em Hegel, contrariamente ao que parece, no elemento da sua ação. O estudo da significação, porém, conecta-se também à Lógica, por sua importância no movimento especulativo que desencadeia o Saber.
              A semiologia de Hegel estende uma relação fundamental entre a memória, imaginação e pensamento. Quando se trata de compreender a linguagem, é a relação desses dois ítens, a memória e o pensamento, no movimento pelo qual um deve se tornar o outro, que é preciso focalizar. Vimos que a interiorização da imagem captada pela intuição vai produzir um memória de representações que será aproveitada como material tanto da fantasia criadora do signo quanto do pensamento que os utilizará no lugar das coisas. O modelo é aqui a linguagem falada, não apenas como algo que exemplifica o funcionamento sígnico, mas como aquilo que é a sua essência.
             Assim como em Saussure, para Derrida, o sistema lingüístico fônico em  Hegel preside qualquer sistema semiótico, o que garante a superioridade da escrita fonética sobre o hieróglifo ou o ideograma como também sobre o formalismo matemático. À aproximação do hegelianismo com Leibniz, proposta, como vimos, por alguns autores, aqui se antepõe a crítica do projeto de uma característica, na base da salvaguarda dessa superioridade da palavra falada e da escrita alfabética que a reproduz. Hegel censura a Leibniz ter considerado vantajoso uma língua escrita perfeita e universal, contruída sobre o modelo hieroglífico, como também a sua valorização do esquematismo hexagramático chinês ou da consideração da matemática como paradigma do conceito.
            O esquema dialético que envolve o signo na teorização de Hegel comporta a Aufhebung, pelo que ele é a suprassunção da intuição sensível-espacial, opondo-se-lhe como inteligência, presença no tempo. Intuição e espaço são o que precisa ser Relevado (Aufgehobene), na terminologia de Derrida aplicada ao que seria o conceito hegeliano de suprassunção, ao mesmo tempo superado e conservado, pelo elemento do tempo, Dasein (existência, presença) do conceito. O que equivale, para Derrida, a afirmar que o tempo e o conceito são a verdade do espaço e da intuição.
           Assim como o significante se apaga pelo significado que o releva, o tempo é o veículo da transição orientada pelo sentido, isto é, do Relevo. A voz, o som fônico, é o mais aparentado ao tempo, como veículo do espírito. Pela voz o som anula a sua mácula, o seu vínculo natural, para se tornar “exterioridade realizada da interioridade que se manifesta”, conforme Hegel traduzido por Derrida.
           O elemento fenomenológico da voz se compreende topicamente instalado entre a naturalidade antropológica e a idealidade psíquico-semiótica, assim como a fenomenologia, ciência da experiência da consciência, se instala entre a filosofia da natureza e a filosofia do espírito. Ora, é preciso apreender aqui a importância do que é nomeado por essa transição. Pois o som significado não apenas transporta a idealidade ao exterior, mas transforma o exterior num meio de sentido, promove a existência sensível à existência representativa ou intelectual, transforma, pois, o mundo e a experiência.
           É a língua e as trocas semióticas realizadas na parole que fazem asceder ao domínio da representação, mundo espiritual, da cultura ou do humano no sentido forte. Hegel não perfaz uma lingüística, é certo, mas conceitua os seus lineamentos, que comportam a oposição entre o elemento formal, gramatical, e o elemento material ou lexicológico. Este último reenvia, regressivamente por relação ao que seria a teleologia, à antropologia e à filosofia da natureza. A gramática, inversamente, reconduz à especulação e à lógica, à filosofia do espírito.
            A palavra, na materialidade de sua emissão, está como que num momento hierárquico que envolve na sua compreensão os desdobramentos da Física, desde o puramente material ao já de algum modo manifesto da luz ao som; e na Estética, o estudo dos sentidos humanos, desde os puramente naturais como o tatear, o provar pelo gosto ou pelo olfato, àqueles que Hegel designa os sentidos teóricos, o ver e o ouvir. A captação do som é, portanto, o cume desse desenvolvimento que ordena a materialidade para o relevo de si mesma, a idealidade.
         O som, elemento mais imaterial dentro do elemento mesmo da materialidade, é o sentido que realiza a maior negatividade, tanto da exterioridade sensível quanto de si mesmo como veículo exterior, pois o som se desvanece, é estremecimento ou vibração que nega duplamente o fora, correspondendo assim o mais intensamente ao dentro, “à subjetividade interior”.
            A formalidade gramatical já se instala no pleno espiritual, ainda que de início somente no patamar do entendimento. A gramática está informada pelas categorias lógicas do entendimento, e Hegel pensa que as línguas dos primitivos permitem comprová-lo de modo mais abrangente do que as línguas dos povos cultos, pois nestas a gramática se apresenta como que simplificada ao máximo, enquanto que naquelas as formas gramaticais se estendem nos seus detalhes.
         Mas isso enquanto uma comparação entre linguagens faladas. Pois no que concerne à evolução da escrita, trata-se de mostrar como, dado o predomínio fônico, ela é algo totalmente acessório, portanto quanto menos investida na materialidade significante tanto mais aproximada à eficiência. A escrita é conceituada por Hegel como “suplemento”, como expressa algo ironicamente Derrida, para quem o termo suplementar significa algo mais do que simplesmente apor um acessório, mas sim um movimento bem mais visceral, transgressivo, ao mesmo tempo que compreensivo daquilo que se suplementa – o que poderia parecer a dialética, mas não seria bem conceituável assim.
           Quanto a Hegel, engaja-se agora na descrição da “hierarquia teleológica das escritas”, conforme a expresão de Derrida, que vai considerar o mero poder “aprender a ler e a escrever uma escrita alfabética” como algo de inestimável valor espiritual, apto a afastar do “concreto sensível”, contribuindo “de maneira essencial para fundar e purificar no sujeito o solo da interioridade”, como esclarece o texto da Enciclopédia.
           Examina-se a pasigrafia, ou escrita universal, historicamente localizável antes de Leibniz, abrangendo os modelos egípcio e chinês, o que envolve o julgamento espiritual de Hegel sobre essas culturas, mas também a abstração matemática tipicamente grego-pitagórica. A progressão do déficit com relação à plenitude do espírito compreende assim o hieróglifo, o ideograma e o hexagrama e atinge essa perfeição paradoxal, de ser a plenitude de um déficit, com o número.
           A manipulação significante, cuja possibilidade é maximizada no formalismo matemático, é o outro do pensamento, que ele mesmo suscitou, é verdade, mas que não deixa de lhe fazer face, de lhe estar face a face contraposto. O encadeamento histórico do hieróglifo à máquina do cálculo permite compreender o caráter apenas aparente de um tal paradoxo. É que atingir o pleno da alteridade equivale a poder ser formulado como o exato oposto daquilo a que se contrapõe, assim como o número com relação ao conceito. Ora, somente o que é perfeitamente oposto permanece embutido naquilo que lhe é contraposto, também como o número permanece indispensável ao movimento conceitual.
             O número é “determinação absoluta da quantidade”, mas “colocada apenas de maneira totalmente exterior”, conforme o texto da Lógica. A diferença se torna indiferente nesse elemento quantitativo, pois não há para o número “objeto concreto que tenha em si relações internas”, as quais, para que pudessem vir à luz, dependeriam do labor da ciência. Não apenas esse trabalho científico parece desnecessário com o número, este mais precisamente o impede, é o seu oposto, pois limita o que há para compreender à decifração do próprio signo. Ora, isso, tal atividade de decifração, é que é o oposto do pensamento, o seu “estranhamento mais exterior” , conforme a expressão de Hegel traduzida por Derrida que conserva o termo original “ausserte Entausserung”, permitindo, portanto, que se recorde aqui a acepção fenomenológica da Extrusão.
              A violência do signo é essa atividade que consiste no desenvolvimento intelectivo-cognitivo de um não-pensament, posto que o objeto não poderá jamais se reduzir à própria ação do sujeito. O mais abstrato da determinação da exterioridade se encontra pelo lado de dentro do pensamento puro, esse pensar “do estranhamento próprio do ato de pensar”.
              O pensar está posto pela matemática, portanto, “face ao seu outro”, registra Derrida, esse outro “que ele certamente suscitou que se lhe oporia em vistas a reapropriar-se (dele)”. Se Leibniz fosse preservado, se o não-pensamento fosse constituído em modelo ideal, estaria neutralizada a operação dialética. Hegel pensa que é preciso, pois, “interiorizar, resumir, relevar” a oposição no pensamento, isto é, o pensamento tornando-se esse relevo, o que assinala também o ponto alto do texto de Derrida, onde se compreende a possibilidade da metafísica.
                Pois que o pensamento possa relevar a transgressão sensível, que é o que se formaliza no formalismo matemático e no número, significa que é ele a verdade do Ser, não a coisa que somente ele compreende que “é”- aí.
                 Assim, ele, o pensamento, retroage sobre tudo o que veio se lhe opondo: é o signo que é a verdade do símbolo, é o conceito que é a verdade do signo, mas o conceito é essa “linguagem sem linguagem”, voz interior que murmura “bem junto do espírito” - com efeito, para Derrida, atinge-se aqui a mais perfeita identidade do nome com o ser, 
                   Na interpretação derridiana, evidencia-se plenamente como a alteridade dialética é uma redução do Outro ao Mesmo, tanto mais que possa nomear o Outro, situá-lo por relação ao Mesmo, anulando-se assim, num só golpe, o Outro e a Alteridade. Derrida interrogar aqui sobre o que seria o negativo que não se deixasse suprassumir, negativo que pudesse não “ aparecer como tal”, isto é, que pudesse não “trabalhar ao serviço do sentido”: a resposta seria “muito simplesmente uma máquina, e que funcionasse”, definida assim “no seu puro funcionamento”, precisamente “no seu trabalho” - deveríamos grifar esse possessivo.
                   Eis o que “Hegel, intérprete relevante de toda a história da filosofia, nunca pôde pensar”. A máquina que pudesse funcionar “sem ser nisso regulada por uma ordem de reapropriação”. Isso é o impensável de um pensamento que só pode pensar relevando, isto é, constituindo-se como o relevo do seu oposto. O impensável seria nomeado, se pudesse ser pensado como pura perda, correlato do não-funcionamento, do não-trabalho. Pois o funcionar não pode ser pensado, nessa estrutura do relevo, na abrangência daquele possessivo.
                O que está impossibilidado de ser pensado é a Alteridade do pensar, o pensamento não metafisicamente subsumido, para Derrida o que impossibilita é esse gigantesco psicologismo que não apreende a sua própria maquinação.
           A condenação do cálculo como o “vazio de substância” (Wesenlos) do pensar, estende uma aproximação de Hegel a Heidegger, a quem pertence a expressão entre aspas, conforme o texto de Derrida. É à repetição que se opõe o espírito pensante-falante naquilo que seria a sua perene novidade. Confronta-se portanto, de modo o mais extremo, esses dois eixos filosóficos, o pensamento dialético do Mesmo e do Outro pós-estrutural, pois aqui qualquer frase se lê ao mesmo tempo num sentido e no seu oposto. Na acepção pós-estrutural, é a repetição que garante a Alteridade não situada pelo Mesmo, enquanto a aparente espontaneidade da experiência loquaz se torna o puro repor desse interditar o ver a irredutibilidade, mas também o se ver o que se está a repetir – experiência do clichê.
             Mas seria preciso perguntar sobre a mesmidade do mesmo em Hegel, na medida que o conceito hegeliano de Sujeito  está, sim, dependendo da posição da alteridade do signo, o que para o sujeito é transgressão - no entanto, não seria a transgressão própria do pós-kantismo em relação a toda tradição metafísica, afirmar essa alteridade?  Pois, até aqui, como no platonismo, uma vez anulado o parasitário, o meramente suplementar como o significante, resta o mesmo (identidade) da ideia eterna, e portanto no platonismo não pode haver nada mais ideal que a matemática. O que é o inverso da postulação de Hegel.
            No platonismo, a meu ver, o que ocorre não é a posição da alteridade do signo, é a anulação do signo como uma realidade, portanto, como algo efetivamente pensável, correlato de alguma ideia. O signo está na região do reflexo, da sombra, da palavra sem conteúdo, do devir, do que é apenas aparência, não realidade. Hegel não predica o signo como uma aparência, por outro lado ele não parece ter lidado com um pensamento que pudesse vir a ser sem signos. Mas o que vem a ser no pensamento é o seu movimento de constituir-se, ou seja, conforme Hegel não existe pensamento puro na exterioridade dos sujeitos  históricos pensantes, e quanto a estes, são historicamente de forma que não podem abstrair-se de si mesmos, não podem abstrair-se enquanto seres historicamente situados.
          Quanto ao modo como essa apreensão do sujeito histórico se interpôs a Hegel como o outro processo da história - aquele pelo qual ela se fez a história de civilizações e de escritas de cuja informação o ocidente ainda era muito deficitário, mas  que era preciso estudar e apreender na sua irredutibilidade, e sobretudo como ela veio a ser uma história onde o ocidente se torna uma centralidade geopolítica e cultural na iminência da sociedade industrial, penso que seria efetivamente necessário não reduzir ao todo da sua filosofia.          

                                                                                                            ===========
                                                                                                                             em 7 / 11 / 2011

          Bibliografia (contendo apenas as  referências principais ao desenvolvimento do texto);

     Bréhier, E. Histoire de la philosophie, Paris, p.u.f., 1989.
     Chatelet, A. História da filosofia, ideias, doutrinas, Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
     Dotti, Jorge et. alii. Estado e política, a filosofia política de Hegel, Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
     Hegel. Fenomenologia do espírito (2 v.). Petrópolis, Vozes, 1992.
                A razão na História, uma introdução geral à filosofia da história / introdução de Robert
                       Hartman. São Paulo,  Centauro, 2001.
               Pensadores (coleção);
     Lacan, J. O seminário: livro 1 : os escritos técnicos de Freud. Rio de janeiro, Zahar, 1983.
                    Seminário: livro 18 : de um discurso que não fosse semblante : Rio de Janeiro, Zahar,    
                          2009.
     Regnier, Marcel et. alii. Hegel e o pensamento moderno,  Porto, Rés, 1979.
     Scheling, F. von. Pensadores (coleção).  

                 
                                                                    ============
                   
                     Uma lista de autenticidade dos blogs de minha autoria na internet encontra-se naqueles intitulados O Romantismo, el doble e o fantástico; Pensamento brasileiro; Textos da contemporaneidade;


 
            
               
           
 

                    

Nenhum comentário:

Postar um comentário